quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Mais má que todos os maus

imagem: Eva Armisén



Quando a minha filha mais velha nasceu, o que me surpreendeu verdadeiramente foi a sua independência. Constatei-a separada de mim, um ser autónomo, com uma individualidade própria que nunca imaginei que pudesse ser tão clara num bebé recém-nascido. Olhando para ela, senti-a destemida, corajosa, independente.

O prenúncio revelou-se acertado. A falta de medo dela chegava a assustar, não especialmente a mim, mas muitas vezes aos que nos rodeavam. Aos 18 meses, no café, o bêbedo da terra estendeu-lhe a mão e ela, sem hesitar, saiu porta fora com ele. Sem olhar para trás, enquanto eu, de boca aberta, assistia à cena e aos gritos dos presentes: "Vá atrás dela!", "Olhe que ele leva a menina!". Com 2 anos, entrava destemida pelo parque infantil, abraçava na rua pitbulls que passeavam com coleiras de picos, chamava a atenção de qualquer adulto, em qualquer situação ou local, sempre que entendia que uma injustiça social estava a ser praticada.

Inconsciência, dirão uns. Falta de noção do perigo. Têm toda a razão, com certeza. Mas para mim, quando um ser tão pequeno enfrenta assim um mundo bem maior que ela, não é só falta de conhecimento. É também uma coragem do caraças.

Há pouco tempo, já a caminho dos três anos e meio, começou o medo "dos maus". O medo do escuro, os pesadelos. Calculei que fosse normal nesta fase. Ela olhava para mim em busca de tranquilização e eu tive vontade de lhe garantir que não há maus nenhuns, que podia dormir descansada, ir às escuras pelo corredor até ao quarto. Porque os maus não existem. É tudo imaginação.

Mas poderia fazê-lo, em consciência?

A minha filha tem três anos e meio e já percebeu que o mundo está carregado de “maus”.

Ela vai contactar com eles durante a vida, não com os “mais maus” de todos, os verdadeiros “maus”, espero eu, mas provavelmente com uma variedade ampla de “mini-maus” que todos nós enfrentamos no dia a dia.

(os mauzinhos, os egoístas, os mesquinhos, os invejosos, os mentirosos… oh senhores, a lista de maus do quotidiano pode mesmo ser infindável e o grau de danos que nos podem inflingir varia, não só em gravidade, mas também no nível de influência que lhes permitimos.. mas isso será assunto para outro post).

Não. Eu mãe, que preparo a minha filha para a vida, não posso garantir-lhe que os maus não existem. Suponho que esta percepção adquirida seja até uma forma de auto-protecção que lhe vá ser útil. Mas também não quero contagiá-la com medos.

Com os meus medos. Tantos, tantos mais, desde o dia em que ela nasceu e eu me tornei mãe.

Num espaço habitado por psicólogos e pediatras sinto-me uma herege ao terminar o relato. Mas confrontada com as perguntas em catadupa,

“Há maus no meu quarto, mãe? E lá fora na rua? E os maus entram em casa quando estamos a dormir? E se me apanham?”.

Não, não dá para pensar em respostas pedagógicas ou estruturadas.

Sigo o instinto, e a cada pergunta com o coração mais apertado, disparo e resolvo o assunto:

“Não te preocupes porque os maus não entram cá em casa.
Tentaram uma vez e a mãe agarrou num pau e bateu-lhes tanto que eles fugiram a correr.
Deitaram sangue e tudo. Bati-lhes com toda a força.
Tanta, que esses maus avisaram os outros maus que tinham ficado em casa que aqui vivia uma maluca que batia nos maus com toda a força.
Agora todos os maus têm medo de aparecer aqui.”

Ela sorriu, condescendente, mas (mais) tranquila.
Confio que saberá conciliar isto com outros ensinamentos, nomeadamente de que os problemas da vida não se resolvem à cacetada.

Eu preciso de ter presente em mim esta confiança de que, para defender um filho, somos capazes de tudo. Se o devemos fazer e quais são os limites, essa será outra conversa.

Para já, assunto resolvido.
Dorme descansada, minha querida, que o perímetro está seguro.

4 comentários:

  1. Um espaço habitado por peds e psis é um espaço muita mau.
    Ainda bem que estás por aqui, Constança

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  2. Não podia concordar mais com o Luís.
    Ainda bem Constança. A sua querida deve ser um bom perigo. O tempo (desenvolvimento) cura muita coisa. Mesmo "que os problemas da vida não se resolvem à cacetada".
    Parabéns pela existência dum espaço fresco, humano como o vosso.

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  3. O Luís não podia ter mais razão.
    A tua querida deve ser um bom perigo. Mas o tempo (desenvolvimento) trata disso.
    Mesmo "que os problemas da vida não se resolvem à cacetada".
    Parabéns e obrigado pela existência de um espaço fresco e humano como o vosso.

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  4. Adorei as histórias! Tenho a certeza de que a tua filha saberá resolver os probs sem ser à cacetada. E por agora pode dormir descansada com menos sonhos maus sentindo-se protegida. Bom blog! Vou seguir:)

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