quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Começar a estudar, desde já!

Por Bárbara Wong*



O novo ano lectivo começou há poucas semanas. Depois das apresentações e das revisões da matéria dada no ano anterior, os primeiros testes já estão marcados e os trabalhos já têm prazo de entrega. Eles ainda têm memórias das férias, volta e meia ainda há um dia ou outro que lembra a praia, o dolce fare niente, as tardes de leitura ou de jogos intermináveis.

Mas não! A rotina está aí, as aulas e as centenas de actividades extra-curriculares. E se estas últimas são às centenas, então, o melhor é desenhar um horário onde se meta tudo o que a criança tem e ver em que horas é que pode estudar e quantas sobram para brincar ou, pura e simplesmente, não fazer nada. As últimas são importantíssimas.

Antes que a escola recomende aos pais para se sentarem ao lado dos filhos, para supervisionarem se os trabalhos de casa estão a ser feitos. O melhor é anteciparmo-nos e fazermos isso mesmo. Não ficar só pela pergunta, gritada da cozinha: “Tens trabalhos? Já fizeste?”, mas ir lá ver se existem, se estão feitos e se têm um ar de resposta completa e não de qualquer coisa que se tirou das soluções, vindas no final do livro.

Eu sei, ao fim do dia, os pais estão cansados e a escola e os trabalhos de casa podem ser motivo para conflito com os filhos, uma guerra que se quer evitar. Mas não pode ser! Há que respirar fundo e manter a calma. Afinal, o ano é para começar com o pé direito e levá-lo pelo melhor caminho possível.

Além disso, os filhos gostam, mesmo que não o admitam, que os pais se interessem pelos seus assuntos, que os acompanhem, que os “chateiem”, que estejam ao seu lado a apoiá-los e apoiar não é fazer o trabalho, é ajudar a descobrir a resposta, a fazer pesquisa, a procurar e não “chega-te para lá que eu faço isto, que é muito mais rápido!”.

É impossível prometer que serão horas bem passadas, mas serão certamente horas que vão ajudá-los a conseguir melhores resultados.

*Bárbara Wong é jornalista do Público, especializada em educação.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Este post nasceu comentário...

... mas o Bebé Filósofo gostou tanto que resolveu dar-lhe as honras devidas e publicá-lo aqui.
Obrigada, João Colaço pela sua história, pela perspectiva que nos trouxe. Continue(m) por aí!

Por João M.S.Colaço*



Belo texto, que me fez acordar para um tempo em que meus pais andavam atarefados, mas deixavam aos filhos a missão de se cuidarem.

Belos tempos em que o meu infantário era numa seira de palha ou cana, que era transportada na carroça da vaca e que depois era depositada na "cabeceira" da leira de terra onde os meus pais se envolviam na tarefa do amanho da terra que nos havia de recompensar com a produção agrícola que nos mitigava a fome.

Se estava sol, por cima da cesta era colocado um enorme guarda chuva que me fazia sombra e quando começava a desaparecer a sombra, logo vinha uma mão amiga, rodar o mesmo.

Se eu chorava, logo sabiam o que criança queria, e se tivesse a fralda molhada logo era substituida por outra e guardada a suja para meter em casa na barrela.

Se a criança chorava mais forte, logo vinha a mãe que, pelo caminho apanhava uma folha de couve bem verdinha para lhe limpar o rabo...

Os dias foram passando, esta criança foi crescendo neste belo infantário, até que começou a ter contacto com a terra onde começou a pousar os joelhos. Ela apanhava um punhado dessa terra, cheirava-a e levava-a à boca para a saborear e nesse momento logo vinha um dos pais aflitos limpar a boca ao menino.

Foi, fazendo castelos com a areia da leira, areia essa que lhe daria o alimento que ela tanto viria a necessitar, e ouvindo a música celeste produzida pelas centenas de pássaros que com ele vinham brincar e tagarelar também. Se fosse Inverno, a casa de uma vizinha já idosa, era o local onde a criança ficava,onde sentada no borralho, ia aprendendo outros segredos da vida e ouvindo histórias fantásticas.

Foi neste infantário fabuloso,onde havia animais de toda a espécie, com os quais o menino partilhava o espaço, que esse menino foi crescendo,até ir para a escola primária.

Uma escola linda, onde ele teve medo de entrar no primeiro dia de aulas.

A mãe e o pai foram com ele, para lhe ensinarem o caminho, mas no fim do dia de aulas, já o não foram procurar, pois ele já sabia o caminho para casa.

Um dia e outro e, mais outro, e chegou o dia em que o menino teve que ir fazer exame da 4º classe à escola da vila.

Parecia um príncipe, com camisa branca, um fato novo de casaco e calções,sandálias e meias compradas só para esse dia.O pai acompanhou-o, esperou pelas provas e aqui já era necessário ele começar a conhecer outros espaços, que seriam a sua segunda casa nos próximos anos, durante grande parte do dia.

Ali ao lado da escola, havia o colégio, um monstro onde este menino deveria começar a esgrimir a sua pesada espada, para se fazer homem.

Como as aulas começavam logo em tempo de chuva, lá ia ele com um saco de adubo vazio, dobrado ao meio e enfiado na cabeça, como uma capucha serrana, pois não havia dinheiro para lhe comprar uma gabardina, levando na mão uma pasta de cabedal onde carregava só os livros e cadernos para as disciplinas que teria em cada dia.

Assim este menino foi crescendo, brincando sempre em contacto com a natureza e se foi fazendo homem até ao momento em que foi servir a nação como militar.

Foi militar, andou na guerra do Ultramar, e fixou-se nessa cidade, onde todos são surdos e mudos e ninguém se conhece. Mas, apesar de tudo,ali constituíu família e ali procriou, sem ter tido a possibilidade de dar ao seu filho o prazer de andar pelas poças da água descalço e a chapinhar, de meter as mãos na terra e cheirá-la e saboreá-la, de viver na companhia da passarada, pois na cidade até estes fogem do ser humano. Ali fez a sua vida, ali criou seu filho e quando chegou a hora de ter que abandonar o seviço, pois já havia cumprido uma missão a que se entregou de alma e coração, regressou à sua terra natal, onde reiniciou muitos dos rituais por que havia passado enquanto criança.

Como seria bom que aquele belo infantário ainda fosse hoje aproveitado e para os que já estão em provecta idade, este espaço se transformasse agora num centro de apoio à terceira idade.

Depois da realidade, aquele menino continua agora a sonhar!


* João tem 63 anos de idade e é aposentado, colocou este texto originalmente como comentário ao post "O Bairro do Amor".

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Trabalham as crianças tanto como os adultos?

Por Maria José Araújo*

Em Portugal, as crianças que frequentam o 1.º Ciclo do Ensino Básico trabalham 5 horas na sala de aula (25 horas por semana). Depois têm actividades extra-curriculares ou de enriquecimento curricular e, ainda, os trabalhos de casa.

Tudo somado as crianças trabalham cerca de 7/8 horas diárias em função da socialização escolar. Um adulto trabalha cerca de 7 horas e meia por dia (37,5 a 40 horas semanais). Olhando para o tempo médio de um adulto e de uma criança, percebemos que as crianças trabalham no seu ofício de alunas tanto quanto um trabalhador adulto.

Para uma criança, o trabalho escolar, com tudo o que ele comporta de actividade, representa o exacto equivalente ao trabalho profissional de vida de um adulto. Mas enquanto a duração do trabalho profissional exige um grande descanso para a maioria dos adultos, o trabalho escolar é cada vez mais desenvolvido dentro e fora da sala de aula. Há mais de 20 anos que se fala de excesso e de malefícios físicos, psicológicos e morais para as crianças. A cultura escolar sobrepõe-se à cultura lúdica e é “imposta” na maior parte das actividades que são propostas às crianças e aos jovens no seu tempo livre, um tempo que não tem sido considerado como um tempo de descanso ou como um tempo em que eles possam escolher o que fazer. As actividades de lazer no tempo livre têm sido banidas, salvo se houver um feriado ou férias. A psicologia da infância e da adolescência, assim como as ciências da educação e a sociologia da infância, têm denunciado e reagido a este regime de trabalho escolar, que continua não só a ser praticado como até a ser desenvolvido, vulgarizado e disseminado.

As crianças vão reagindo inventando formas múltiplas de resistência a um trabalho cujo sentido não é explícito e muitas vezes é excessivo e cansativo. Não é tanto só a quantidade que é problemática (pois as crianças gostam de ter que fazer), mas por ser uma tarefa repetitiva, uma actividade constante que não vai ao encontro das realidades culturais e cognitiva e às motivações das próprias crianças, entre outras razões.

Na verdade, a escola é muitíssimo importante, mas depois das aulas as crianças têm de fazer outras coisas.

Têm de brincar e descansar.



Maria José Araújo é investigadora da Universidade do Porto

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

A Pediatria


Por Luís Januário, presidente da Sociedade Portuguesa de Pediatria*

Vivemos os tempos conturbados de uma crise mundial que alguns querem reduzir aos aspectos quase caricaturais da política nacional mas que é uma crise civilizacional, cujas causas, dimensão, profundidade escapam ao indivíduo comum mas que é seguramente demorada, com reflexos na comunidade que somos e sem saídas visíveis.

O Estado emergente da segunda guerra mundial e do triunfo das democracias esboroa-se, sem que se vislumbrem propostas que assegurem que as suas funções mínimas - nomeadamente na saúde, educação, justiça - serão substituídas por modelos capazes de assegurar o bem estar geral, o respeito pelas minorias, a igualdade de oportunidades.

O ser humano, asseguram os neurobiólogos, é incapaz da visão de médio e longo prazo.

A civilização da ilha da Páscoa derrubou até à última árvore para levantar as estátuas das divindades, os maias desmataram as florestas, os habitantes do Chaco Canyon não resistiram à alteração ambiental que ajudaram a produzir.

Por outro lado o nosso cérebro produz permanentemente imagens, uma construção autobiográfica, uma falsa causalidade entre eventos díspares, dominado por uma compulsão para dar explicações, encontrar uma razão profunda na vida - mesmo quando nenhuma razão, nenhuma coerência, são prováveis.

Nenhum privilegiado renunciará ao que considera o direito adquirido, mesmo que este o tenha sido pelo roubo, o engano dos crédulos.

Destruiremos as florestas como os habitantes da ilha da Páscoa, e nenhuma memória do passado nos salvará enquanto alguns beneficiarem alguma coisa e a turba não sentir a fome, a miséria e a doença (que é um pouco diferente de “o povo sentir as dores do governo”).

É neste cenário de fim de festa que crescem a crianças da Europa, de maneira desigual consoante a cena decorra na Calheta ou em Cascais mas todas unidas na contracção demográfica, na superioridade relativamente aos mais fracos, no desconhecimento e no medo do Outro (seja ele o cigano, o árabe ou o subsahariano).

No caso português é importante juntar a estes factos outro, mais antigo e mais importante: muitas das nossas crianças são pobres. Somos o país europeu com mais pobreza infantil e onde os factores de stress económico são mais importantes tais como os de privação material (condições materiais de vida, habitação, posse de bens duráveis, capacidade de obter as necessidades básicas).

Só conseguiremos responder às questões das crianças e das famílias se juntarmos à nossa visão especializada uma outra, de carácter global, sobre a infância.

Nos dias de hoje essa visão não pode ignorar as alterações sociais que criaram uma sociedade de filhos únicos, na cidade de betão sem passeios nem quintais, com creches e ATL,s impondo ritmos que, como veremos neste congresso, são muitas vezes mais exigentes do que os impostos aos adultos empregados.

Dez por cento das crianças entre os 9 e os 17 anos têm problemas de comportamento. Os problemas de comportamento atravessam todas as idades e são o motivo explícito ou o não-dito de muitas consultas.

Os avanços tecnológicos informatizaram os serviços muitas vezes na perspectiva da facturação.

A facilidade de contacto com colegas de outros centros e de outros países e o acesso on line à informação tem uma contrapartida: muitos pais também procuram informação na rede, tornando a questão da administração da informação e da comunicação uma exigência.

A profissão de pediatra é hoje exercida no feminino.E as mulheres trazem ao exercício profissional um repto: como conciliar a família com a carreira?

O Serviço de Saúde modificou-se. Na crise económica um sector que parece rentável é o da saúde. Os capitais privados investem na saúde criando uma competição que seria saudável se não enfraquecesse o SNS, capturasse mão de obra especializada após mais de 20 anos de elevado investimento e num ambiente em que as regras de respeito pela carreira médica- e a própria noção de carreira médica- foram congeladas.

O que procurámos fazer foi assegurar a centralidade destas questões, promover a investigação e a formação, a ligação à investigação antropológica, linguística, biológica, sociológica, filosófica.

Crentes de que, se houver resposta, ela terá de ser encontrada nas nossas baixas origens, como dizia Darwin, na nossa animalidade, que está paradoxalmente próxima da natureza e da divindade.

Acabo como comecei: quando deixo o meu cérebro à solta ele dá-me, apesar dos tempos cinzentos, uma mensagem de optimismo. Não interessa que este optimismo seja, ele também, sem ligação com a realidade, apenas uma manifestação mais da pressão selectiva da evolução. Os meus antepassados optimistas foram bafejados na lotaria genética da procriação e é a eles que agora agradeço esta característica, que sei partilhar com muitos de vós e em última análise nos reúne aqui hoje.

* discurso de abertura do 11º Congresso Nacional de Pediatria que decorre até 8 de Outubro no Funchal e reúne mais de 700 pediatras.