terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Impaciência

Por Gonçalo Cordeiro Ferreira*


"The time has come," the Walrus said,"To talk of many things:

Of shoes—and ships—and sealing-wax—

Of cabbages—and kings—

And why the sea is boiling hot—

And whether pigs have wings."


Lewis Carroll ; Through the looking glass


Nunca como hoje a perspectiva da duração da vida foi tão longa.
Seria pois de esperar que de uma forma geral todos fôssemos mais pacientes, para não dizer contemplativos.  Afinal, nos séculos anteriores em que a esperança de vida era bem mais curta , não havia a pressa actual de fazer tudo em menos tempo.

Esperava-se.

Com as doenças das crianças passa-se o mesmo. As doenças, sobretudo as agudas e simples, têm uma história natural própria, usualmente com bom prognóstico, em que a intervenção médica pouco vai adiantar no sentido de a encurtar e, por vezes, até pode indirectamente prolongá-la.

Tomemos como exemplo dois sintomas muito comuns nas crianças: a tosse e a febre.

Nestes casos, na maioria das vezes, a quantidade dos mesmos não tem directamente a ver com a gravidade da doença.

Os médicos sabem isso.

Os pais não, e preocupam-se.

Mas, quer a febre, quer a tosse, correspondem geralmente, sobretudo quando juntas, a processos infecciosos de origem viral das vias respiratórias altas.

Na maioria dos casos benignos, mas com uma história natural bem definida, em que a febre dura habitualmente dois a quatro dias e a tosse pode arrastar-se, antes e depois da febre, por uma a duas semanas.

E por mais que se faça, por mais antis que se dêem (antibióticos, antitússicos, antialérgicos, antipiréticos) não vamos modificar, no sentido de encurtar (quando muito modulamos) esta situação.

E aqui começa a impaciência.
Impaciência dos pais porque a criança tosse a noite toda (às vezes nem acordando) e não conseguem dormir, ou porque a criança vomita com a tosse ou porque lá têm de a ir buscar novamente ao infantário. Ou porque estão verdadeiramente preocupados com o sintoma e acham que pode ser indício de doença mais séria.

Impaciência dos médicos, cansados de explicar vezes sem conta a benignidade da situação,  às vezes esquecendo-se que essas inúmeras explicações não são sempre dirigidas aos mesmos pais, e sentindo-se impotentes para atalhar o sintoma (sobretudo a famigerada tosse).


Impaciência dos professores ou educadores quando as crianças tossem na escola, telefonando imediatamente aos pais para as virem buscar, pois temem que possam ter uma doença que contagie todos os outros.
Este cruzar de impaciências aumenta a escalada terapêutica de resposta , numa panóplia que faz a felicidade de produtores de xaropes, aparelhos de aerossóis e outros, que podem inclusivamente perenizar os sintomas (o uso prolongado de expectorantes prolonga a tosse) e leva às vezes a gastos em análises completamente supérfluos.
(sobretudo quando se faz a ligação fácil entre muita tosse ou muitas tosses e “alergia”, esquecendo-se que as causas mais frequentes para a manutenção da mesma é a exposição da criança a irritantes das vias aéreas, nomeadamente ao fumo ou ao cheiro-até nas roupas- do tabaco).

Noutro nível, é esta mesma impaciência, o não saber aceitar a evolução habitual das doenças ou a variabilidade dos seres humanos, que faz nos hospitais os médicos mudarem de antibióticos quando a febre não passa logo, ou que faz com que os professores levantem logo a suspeita de perturbação do comportamento numa criança mais imatura ou distraída.

As crianças pequenas, sobretudo quando em contacto com outras crianças no infantário ou em casa com irmãos que os frequentam, estão expostas a múltiplos agentes infecciosos (vírus na maioria) e adoecem. Quando estimuladas, há células das vias aéreas superiores que produzem muco (mecanismo de defesa – que pode “embrulhar” os vírus) e depois leva à tosse,  expelindo esse muco e esses vírus.

A febre e a tosse devem pois ser entendidas como um mecanismo de defesa e não como uma ameaça, e a doença aguda, sobretudo na criança pequena, como um facto normal, uma espécie de vacinas naturais sucessivas.

O problema não está tanto na criança adoecer, mas sim numa sociedade em que ambos os pais trabalham, e que não está preparada para acolher, na sua casa, tantas vezes e por quanto tempo seja necessário, a criança doente.

Uma sociedade que não está preparada para a pausa. Uma sociedade da impaciência.

O bebé filósofo, que também sofre dos mesmos tiques civilizacionais, comenta: “não há paciência para tanta impaciência!"

*Gonçalo Cordeiro Ferreira, 53 anos,  pediatra e pai de 5 filhos.

4 comentários:

  1. acho que o que diz é verdade. antigamente, as doenças curavam-se com panos húmidos na testa, bebidas quentes, vigilias à cabeceira do doente, orações e paciência. O tempo cura tudo (?) e o sistema imunitário acabava por cumprir a sua função. Mas hoje em dia, o facto de a medicina oferecer soluções que aliviam sintomas e alternativas múltiplas de ataque, gera também a ansiedade em nós mães: será que estamos a fazer o que é preciso? e onde traçar o limite entre a linha ténue do curso natural da doença e daquilo que já são sinais de alerta de que algo não está bem? não somos médicas... e a perspectiva de que nos pode escapar algo de mais grave é assustadora...

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  2. Tem piada. De facto, vivemos numa sociedade obcecada em descobrir relações simples e directas de causa-efeito, viciada na crença de que há sempre alguma coisa a fazer, algum remédio a tomar. Mais do que simplesmente impaciantes, parece que às vezes temos pavor em estar quietos. É bom ver um médico a dizer-nos que às vezes é preciso apenas esperar que passe...

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  3. Deve ou não haver paciência para a impaciência? É o seculo XXI. A vida a correr, sem tempo para a vida e por isso sem tempo para a paciência.

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  4. não devia haver paciencia para a impaciencia. a impaciencia impede-nos de desfrutar, esperar, contemplar. a vida já passa a correr, se nós ainda tentamos ultrapassá-la e correr à frente dela, quando dermos por nós... simplesmente acabou.

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