terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Lactente persistente


John Currin, Nice

Em cem anos a nossa espécie mudou. No hemisfério norte a agricultura, como existira nos séculos anteriores, acabou. As populações acumularam-se nas cidades. As doenças infecciosas foram parcialmente controladas. A mortalidade infantil baixou e aumentou a longevidade. A nova demografia dos países desenvolvidas é agora constituída por famílias onde há apenas uma criança- abaixo da taxa de substituição. A morte desapareceu do quotidiano, atirada para os hospitais. Deixou de ser natural. Há sempre um culpado - geralmente um médico incompetente ou o Serviço de Saúde. Gastam-se milhões com medicamentos inúteis. Num mundo irreconhecível, governado por funcionários cinzentos e ambiciosos filhos da classe média alcandorados a chefes de quadrilha, desapareceram os sinais das nossas baixas origens. É incrível como as crianças ainda mamam. Depois de um parto cirúrgico, em ambiente hospitalar, os bebés humanos mamam. É verdade que o fazem em mamas envergonhadas, mais ocultas que nas esplanadas. Mas mamam, os infelizes, no seu breve estádio pré-cultural, quase iguais aos seus antepassados pleistocénicos. Mamam em mamas provisórias, todas a caminho da futura copa D comum. Mamam inocentes, na obscuridade de um quarto. Se o fizessem em público as mães seriam multadas. Em público só leite em pó, só biberão, mamadeira. Biberão de tetina anatómica - como os fabricantes imaginam que era o mamilo humano abocanhado.
A lactação é tolerada, enquanto o bebé é inocente. Depois torna-se indecente. Um miúdo que mete as mãos no decote materno é um cigano. O lactente persistente não é o errante navegante que o Caetano cantou. É um animal que arrasta a mãe para a lama da biologia. Um ser neolítico. Um reliquat das berças. Uma versão reduzida do Professor do José Rodrigues dos Santos, tratando a mãe como uma Sueca. E a lactante demorada só pode ser uma neo hippie tardia, de compridas saias patchwork, fraldas de pano e falta de desodorizante.
Por cada criança, um enxoval de roupa de marca, uma cama de grades à medida, uma cadeira de transporte modelo A, um carrinho de rodas, uma saca de nécessaires, uma espreguiçadeira, uma banheira, a gama completa da linha de beleza infantil, o cartão do cidadão, o cartão de saúde, o cartão das vacinas. Não se vê a criança? Que importa. O que interessa é a ideia de criança. O sentimento de paz e de tranquilidade que a ideia de criança transporta e que a parafernália, mesmo ocultando a criança real, só por si desencadeia. A criança real é a cólica, a tortura das mamas, a insónia, a prisão doméstica. Felizmente que é rara e que passamos bem sem ela.

7 comentários:

  1. Num mundo asséptico e civilizado, eu sou uma lactante demorada. O meu actual lactante persistente vai a caminho dos oito meses e, sim, passou a fase da inocência, ataca-me o decote, grita "mã" "mã" e mama de joelhos, enquanto, mesmo à homem, deita um olho à televisão. Numa sociedade civilizada, eu sou semi-vista como a neo-hippie vestida de patchwork. Mas não me importo. Dou/sou alimento dos meus filhos, as minhas crias. Passso-lhes conforto, mimo, anticorpos. Sou uma necessidade básica. Para mim a amamentação é em grande parte um exercício de humildade. Não tem que ser lindo, maravilhoso ou romântico. Tem que alimentar e proteger, é esse o seu propósito. Descomplicando, resumindo, sintetizando: eu e eles somos mamíferos. Ponto. Tudo o resto é verniz, plástico, acessórios. E que grande exercício de liberdade é poder prescindir da sociedade civilizada neste assunto. :)

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  2. Tenho um pseudo-lactente-persistente que já não mama mas adormece com a mão enfiada no meu decote. mesmo quando adormece em público. Usa roupa reciclada e teve fraldas de pano no rabo. Bem me parecia que havia algo de hippie em mim.

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  3. Também sou lactante demorada... e aos olhos da sociedade sou quase uma mulher pedófila ou com algum problema em "cortar o cordão umbilical" e não deixo o meu filho crescer...
    O Rodrigo tem 25 meses... e é com enorme prazer que continuo a dar ao meu filho o que a natureza permitiu que o meu corpo tivesse... fosse como alimento ou conforto...
    E se no meio da rua me enfia a mãe no decote, de mim só tem um sorriso rasgado porque sei que o meu corpo é tão fantástico que para além de ter gerado um ser, pariu-o e ainda o consegue alimentar...
    Vamos lá nós entender os propósitos da natureza... Permitir que tal promiscuidade se prepetue no desenvolvimento da espécie humana :)

    Bjinhos
    BABS
    www.mamaraopeito.org

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  4. Januario. Definitavamente és uma pedrada no charco. O teu lado feminino quase consegue igaular o masculino. Obrigada pelo post!

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  5. Bem, então também me incluo nas neo-hipies tardias, já lá vão 18 meses ( e mais aqueles que a minha piolha quiser!). Além da mama (manina, como ela diz), ainda usa fraldas de pano e usamos roupa reciclada. Moro fora de Lisboa e enfrento os transportes públicos todos os dias para puder dar ar livre e jardins e vizinhos à minha filha. Estaremos perdidas? :D
    Ah, aos olhos do meu gino, sou uma cigana por ainda dar mama!

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  6. Bom eu amamento o Eric com os seus 3 anos a caminho dos 4 e a Miriam com os seus 9 meses redondinhos. Acho que "hippie" até nos assenta bem :) Não haverá é grandes hipóteses de verem o Eric a mamar para vasta audiência porque de mútuo acordo já só mama em casa de manhã e à noite. Os meus lactentes persistentes acham que é moderno mamar.

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  7. É com muito gosto que aos 15 meses e meio ainda se mama e mamará por muito tempo (espero eu).
    Adorei a forma nua e crua como descreve a realidade; o último parágrafo é qualquer coisa!
    E olhe que também não se pode falar muito de amamentação porque para além de hippies também somos apelidadas de "fundamentalistas". Ao que isto chegou!

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