quinta-feira, 4 de março de 2010

Quando não sabes, pergunta aos poetas...

Por Pedro Sampaio Nunes*



Tinha um cravo no meu balcão;


veio um rapaz e pediu-mo: mãe, dou-lho ou não?


Sentada, bordava um lenço de mão


veio um rapaz e pediu-mo: mãe, dou-lho ou não?


Dei um cravo e dei um lenço, só não dei o coração:


mas se o rapaz mo pedir: mãe, dou-lho ou não?"


Eugénio de Andrade


Ao fim de 5 anos dedicados às crianças, apercebo-me que a pediatria de hoje acompanha as profundas mudanças sociais e culturais da nossa sociedade…já não somos só os médicos dos anjos…dos bebés tão queridos, dos corações inocentes, somos também os médicos dos adolescentes problemáticos, das crianças dos bairros marginais, das, cada vez mais, famílias disfuncionais…

A abertura das urgências pediátricas até aos 18 anos condicionou uma nova realidade para nós, mas já presente na nossa sociedade. Não é incomum encontrar nas nossas enfermarias adolescentes que já são mães, o que as coloca num papel paradoxal. Se por um lado, não podem assumir responsabilidades por si próprias, porque são menores, por outro lado assumem grande influência na vida do seu próprio filho. São questões como estas de carácter não só moral, mas também ético-legal, com as quais deparamos cada vez mais.

As crianças crescem e hoje, a complexidade da estrutura social leva-nos a pensar qual o limite entre adolescência e idade adulta. Teoricamente definidos os 19 anos como o limite da idade pediátrica, será na verdade esta barreira real? Pois actualmente aos 16 anos a estrutura física implica terapêuticas destinadas a adultos; e será que a mentalidade assumida, há vários anos, como correspondente à adolescência poderá hoje continuar a ser assumida como pediátrica? A verdade é que as nossas crianças tornam-se cada vez mais precoces. A disponibilidade e facilidade com que se acede à informação, condiciona modelos comportamentais diferentes de há 15 ou 20 anos atrás e a maturação dos processos cognitivo-sociais ocorre de forma individual e dependente de uma série de variáveis, das quais o modelo socio-familiar impõe um peso relevante. Não é por isso de estranhar que encontremos adolescentes com comportamentos e mentalidades de adultos.

Mas, chegará a adulto, aquele a quem roubaram a infância, os sonhos de adolescente, as tardes infindáveis de futebol, a emoção do primeiro namoro?

Acredito que nalguns casos a própria sociedade obrigou estas crianças a ultrapassar esta fase da sua vida, obrigou-os a crescer, por vezes sem quererem, por vezes das formas mais cruéis, sem família, sem apoio, sem sonhos, obrigados a lutar das mais diversas formas para conseguirem um lugar na sociedade que não criaram, mas na qual são obrigados a viver.

Actualmente na área correspondente ao Hospital onde me formei, 80% da criminalidade é perpetrada por jovens com menos de 16 anos de idade e não pretendo de alguma forma desculpar os comportamentos anti-sociais com as influências sócio-familiares, mas não nos podemos esquecer que, tal como disse Pitagoras: "Eduque os meninos e não será preciso castigar os homens". A verdade é que a educação social e moral começa sempre no lar (quando existe), mas atendendo às famílias disfuncionais, que papel cabe ao Pediatra na educação dos seus pacientes? Será meramente de educação e promoção para a saúde? Ou devemos ir mais longe e tentar alcançar a moralidade social? Será este o papel correspondente ao provedor da criança? E porque não da família? E que papel compete a todos nós enquanto membros da sociedade que criámos? Continuar a ostracizar estes grupos menos favorecidos ou contribuir de alguma forma para a sua educação…contribuir para a educação de uma família global, transmitindo valores que nos permitam criar um mundo melhor…

Acredito que o Pediatra de hoje deve saber evoluir, actualizar-se, crescer enquanto clínico e aprender como lidar com as diferentes componentes sociais, enquanto pessoa e enquanto médico. Compete-nos a nós, assumir a resiliência das nossas crianças e saber adoptar as melhores estratégias para lidar com grupos cada vez mais heterogénos.

…Muitas são as dúvidas que percorrem o meu espírito, mas como dizia Freud: “quando não sabes, pergunta aos poetas…eles têm sempre resposta para as questões da alma…” e este poema de Eugénio de Andrade relembra-nos que por muito problemática que seja a nossa sociedade…por muito confusa que estejam as nossas crianças, acima de tudo foram e serão no seu íntimo inocentes, com falta de amor neste mundo…

* Pedro Sampaio Nunes tem 32 anos, é pediatra e Assistente Hospitalar de Pediatria Médica na  Unidade de Cuidados Intensivos e Especiais Pediátricos do Hospital Fernando Fonseca EPE.

1 comentário:

  1. O tema hoje abordado pelo Bebé Filósofo, pela interposta pessoa do Dr. Pedro Sampaio Nunes, não pode deixar de se conectar com o tema que hoje invade a comunicação social em resultado do impacto emocional que obteve junto da sociedade civil. Falo, obviamente, da criança de doze anos, ainda desparecida, que se julga ter-se suicidado em consequência de agressões a que era repetidamente sujeito. Perpetradas pelos seus "pares". Repetidamente (sim, repito também, para que não se esqueça...). O bullying, esse fenómeno que tem um novo nome mas que não é na verdade novo, pode ter consequências graves. O choque que em todos este caso provoca vem, creio, da "materialização" das consequências do bullying. Já não são umas pequenas nódoas negras ou as "meras" lesões psicológicas que inferem na criança que dele é vítima. Tornou-se visível. Significou o fim de uma vida. E o fim de uma vida jovem... A vida de uma criança.
    E é aqui, neste ponto, que faço a ligação com o Bebé Filósofo de hoje.
    A adolescência tem esta mesma característica, a mistura que se faz entre a criança que ainda se é e o adulto que virá a ser. Esquecemos muitas vezes que aos doze anos, como aos catorze, etc, há ainda uma criança, que não tem o discernimento nem a capacidade de lidar e resolver com autonomia as questões sociais em que se vê envolvida. Questões de relacionamento que se ensaiam ainda.Mas mais do que isto esquecemos que na emberbidade que ainda revelam estas crianças, que tantas vezes forçamos a crescer, existe já uma consciência e uma voluntariedade de adulto. Esta consciência é hoje maior por culpa de todos nós. Quantas vezes dizemos que "as crinças hoje crescem mais cedo"? E não continuamos a obrigá-las a crescer? Os motivos serão variados... a sociedade mudou, a informação chega-lhes mais rápido e mais cedo, os pais têm menos tempo, têm menos paciência e consciência do seu papel na parentalidade. Não podemos mudar o que já mudou, temos certamente que acompanhar a evolução que se deu, mas temos todos a obrigação interferir, onde podemos (e devem aqui,ceio, incluir-se também os pediatras, assim com um novo papel, caso tenham a formação e a vontade necessárias). Para mim, enquanto mãe de primeira viagem, com uma bebé de 2 meses, estas são questões que me desafiam mais, e que me preocupam já, que me fazem querer prolongar o mais possível esta inocência que os filhos trazem.
    Deixo ao Bebé Filósofo a sugestão de abordar o bullying. Mas sobretudo o desafio de permanecer na defesa da criança enquanto tal...

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