terça-feira, 9 de março de 2010

Põe-te na rua!

Por João Paulo Batalha*





De vez em quando recebo daqueles e-mails em cadeia (que desconfio ser sempre o mesmo e-mail) recordando as doçuras de ser criança nos anos 80: brincávamos na rua e comíamos terra e não morríamos. Andávamos de carro sem cinto de segurança (eu ia com irmãos e primos para a praia do Guincho empoleirados aos sete e oito e nove em pé no banco de trás de um Citröen Diane, as cabeças de fora ao vento para cabermos todos) e não morríamos. Íamos sozinhos a pé para a escola e não morríamos.



O não morrermos parece ser um ponto recorrente destes e-mails em cadeia – e, de facto, é argumento de mérito. Pois eu também não morri. Mas, verdade seja dita, não recordo com grande nostalgia a beleza inocente de tempos mais simples. Não me lembro dos desenhos animados dos anos 80 que tanta saudade causam – eu dormia, durmo e conto continuar a dormir até tarde aos fins-de-semana. Lembro-me só vagamente dos sugos e das bombocas e dos doces que consta que já não se fazem como antigamente.



Acho mal que as crianças já não brinquem na rua. Mas mesmo isso, para dizer a verdade, acho mal em abstrato. Quando era miúdo vivíamos, pai, mãe e três irmãos, numa casinha apertada em S. João do Estoril. Tínhamos a praia quase ao lado, a serra não muito longe e, na altura, descampados a fartar, invulneráveis à urbanização, mesmo ao pé de casa.



Mas a verdade é que sempre fui muito caseiro. Nunca gostei de jogar à bola (o que calhava bem, porque sempre fui muito mau nisso). Ficava em casa a ver televsão. Uma vez um relâmpago acertou-nos na antena e queimou-nos o televisor. A minha mãe recusou-se a consertá-lo. Descobri a leitura. Depois veio o computador (parece hoje ridículo aplicar o termo “computador” àquilo). ZX Spectrum, nome feliz porque, ao arrancar, o ruído que fazia parecia de facto convocar os espectros. Os jogos eram de uma simplicidade ridícula, com umas cassetes que se inseriam não me lembro bem onde e chiavam desgraçadamente durante dois ou três minutos antes de nos fornecerem um passatempo estúpido e pouco desafiante. Ah, o PacMan, que saudade!, dirá o e-mail.



Para brincar na rua, as mais das vezes, só por expulsão. Os meus pais fartavam-se de nos ver em casa e punham-nos na rua. Vão brincar lá para fora! Nunca os denunciámos à linha de apoio à criança. Que não havia, na altura. E nunca morremos (o que é argumento de mérito). De resto, pôr as crianças na rua era boa ideia, mas não era por sermos crianças. É porque, de vez em quando, é bom pormo-nos na rua, ponto. Mesmo que tenhamos 80 anos. Mudar de hábitos, experimentar novidades, sacudir a complacência. Tudo isso é sempre bom e não tem idade. E afinal, também se fazem muitas coisas boas e úteis dentro de portas. Garotos caseiros também são boa gente.



Hoje as crianças já não brincam na rua. Não é seguro. Os pais vivem aterrorizados com histórias de ladrões e assassinos, de condutores bêbedos que as atropelam e passagens de nível sem guarda – ou faz chuva e cai granizo e caem-nos as crianças com pneumonias. Claro que a maioria destes receios são irracionais e a nossa percepção do risco é espectacularmente exagerada. Claro. Mas está disposto a apostar nisso a vida do seu filho? Pois. De modo que hoje as crianças já não brincam na rua – como nós brincávamos e não morríamos. É uma pena. Uma autêntica tragédia. Um mal irreparável.


Bom. Mudam-se os tempos mudam-se as vontades, muda-se o ser muda-se a confiança e por aí fora. Eu também nunca brinquei muito na rua e sou normal.


Mais ou menos.




*Formado em História, João Paulo Batalha é jornalista e fundador da Storymakers, uma empresa dedicada à produção de exposições, eventos e produtos culturais para crianças.

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