quarta-feira, 19 de maio de 2010

Já imediatamente!

Por João Paulo Batalha*


O meu avô adorava birras. Homem austero e disciplinado, como a época exigia a qualquer bom chefe de família, perdia-se por uma boa birra (por boa birra entenda-se “quanto pior melhor”, sábio critério).


Para nós, miúdos, era desconcertante:

- Mãe, quero água!

- Como é que se diz?

E antes que nós, com a resignação da derrota, lhe recitássemos o “sefáxavor” logo interrompia o meu avô:

- Já, imediatamente!


Nunca soube reagir a isso. Que diabo, eu bem sabia, mesmo que nem sempre me apetecesse, que os meninos bem comportados dizem se faz favor, não dizem já imediatamente! De modo que este incitamento à subsersão, ainda para mais vindo do avô distante que não brincava connosco nem oferecia prendinhas, era bastante assustador.

Este apelo ao descaminho denunciava um mundo em que, afinal, as regras nunca são absolutas. Agora ensinem isto a uma criança habituada a ouvir (e muito bem) “não porque não!” e “porque eu sou a mãe e eu é que mando!” e é todo um horizonte de perversas liberdades que se abre. De hipóteses alternativas, de argumentação (a argumentação possível a uma criança, claro). De livre-pensamento se quisermos ser pretensiosos. De birra, para sermos justos.

Uma vez, não muito antes de morrer (já eu era crescidinho), o meu avô descartou a minha imagem de moço pacato e ordeiro acusando-me uma costela anarquista. Ele lá sabia. E disse-o com certo orgulho. Para um homem que viveu tanto de regras, a possibilidade do desgoverno era atraente. Atraente nas crianças, insuportável nos adultos. Quando crescemos, que remédio, temos obrigação de saber o que é a vida, engolir os sapos e seguir em frente. Quem não o faz não é sério. Mas se somos miúdos, a birra é a autonomia. É a individualidade, é a nossa independência.

De modo que eu partilho com o meu avô este defeito: sou mau pedagogo. Com crianças à volta gosto de provocar e desencaminhar. Quando ensino alguma coisa é meio por acidente. Estou demasiado ocupado a provocar birras, a convocar alternativas. Demasiado ocupado a aprender com essa desordem criativa que tira as coisas dos lugares onde as arrumámos e as reinventa – essa desordem brilhante que nos reensina, se a ouvirmos, o sentido de tudo. Estou demasiado ocupado a divertir-me.

*Formado em História, João Paulo Batalha é jornalista e fundador da Storymakers, uma empresa dedicada à produção de exposições, eventos e produtos culturais para crianças.

1 comentário:

  1. Atenção que esse teu avô não ensinou estas coisas aos filhos dele. Bem, pelo menos de forma tão clara, que isto há muitas formas de ensinar liberdades.

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