*Por António Figueiredo
O sistema imunitário depende de barreiras anatómicas e fisiológicas, da imunidade inata e da imunidade adaptativa. A imunidade inata é responsável por iniciar uma resposta inflamatória em minutos, após a exposição a micróbios agressores. A imunidade adaptativa, ao contrário, demora alguns dias para ser suficientemente robusta para responder à infecção mas é mais específica e tem a capacidade de reconhecer virtualmente qualquer micróbio.
Numa visão simplista e integrada podemos considerar estes 3 níveis naquela que é provavelmente a mais complexa e extraordinária organização do nosso organismo: o sistema imunitário ou as nossas “defesas”, termo habitualmente usado coloquialmente com os pais. É fácil entender a sua importância: imaginem um grande queimado, a sua mortalidade é directamente proporcional à percentagem total da superfície corporal afectada. Imaginem ainda alguém submetido a quimioterapia intensiva, a quem foi subtraído um sistema imunitário normal, e a necessidade de a colocar num ambiente protector, isolado em câmaras especiais, para que não seja exposto a nenhuma infecção; ou alguém infectado com o vírus VIH e que adoece facilmente com bactérias, vírus, fungos ou parasitas que não causariam doença se o sistema imunitário estivesse saudável. Dei-vos exemplos de imunodeficiências secundárias a diversas causas, seja a extensa alteração da integridade da pele, medicamentos ou o vírus VIH.
Contudo, existem outras situações, menos frequentes, em que as nossas defesas não desempenham a sua função como previsto: as Imunodeficiências Primárias (IDP), defeitos congénitos, muitas vezes hereditários, do sistema imunitário, que resultam invariavelmente de defeitos num ou mais genes que controlam o seu desenvolvimento e/ou função. São um grupo heterogéneo de mais de 200 doenças que, apesar de relativamente raras, colectivamente representam um consumo significativo de cuidados de saúde pediátricos. Tanto podem ser fatais no primeiro ano de vida, caso não se proceda a um transplante de medula óssea (TMO) (caso dos SCID – Severe Combined Immunodeficiency) como pouco sintomáticas (caso do Défice de IgA). Quando suspeitar então de uma Imunodeficiência Primária?
Os 10 sinais de alarme desenvolvidos pela Jeffrey Modell Foundation (http://www.info4pi.org/), uma das organizações norte-americanas mais empenhadas na investigação e divulgação das IDP, são um excelente ponto de partida: 4 ou mais otites, 2 ou mais sinusites graves, 2 ou mais pneumonias, tudo num período de 1 ano; antibioterapia prolongada (1 a 2 meses) sem bons resultados; má progressão ponderal; abcessos de orgão ou cutâneos recorrentes; infecções fúngicas persistentes, da pele e mucosas; necessidade de antibioterapia endovenosa para tratar infecções; 2 ou mais infecções graves, incluindo sepsis; e história familiar de IDP.
Poder-se-iam acrescentar outras, não necessariamente do foro infeccioso, como por exemplo febre recorrente ou periódica, ou doença auto-imune nos primeiros anos de vida. Os pais podem estar alerta e discutir estes sinais com o Pediatra, que caso considere os receios fundamentados, referenciará a uma das diversas consultas de especialidade, actualmente existentes em muitos hospitais.
Na investigação de uma IDP é muito importante considerar no diagnóstico diferencial situações muito mais frequentes, nomeadamente, a frequência normal de infecções em crianças pequenas no infantário, exposição passiva a fumo, asma, hipertrofia dos adenóides ou refluxo gastro-esofágico. Caso a suspeita se mantenha procede-se então a uma abordagem analítica por passos, que habitualmente inclui o pedido inicial de imunoglobulinas séricas (nível sanguíneo de anticorpos), acessível, barato e extremamente informativo. Se a suspeita diagnóstica se confirmar ou se a suspeita clínica se mantiver forte o próximo passo é estabelecer um plano terapêutico.
Gostava de sublinhar que nem sempre é possível chegar a um diagnóstico molecular definitivo; contudo, este deve ser almejado porque permite a optimização do tratamento, aconselhamento genético e diagnóstico pré-natal. Relativamente ao tratamento, pode tratar-se de uma emergência quando se trata de crianças com defeitos imunológicos graves (por exemplo os SCID, atrás referidos, são doenças raras que se apresentam em crianças pequenas, com um ar doente, também chamadas de bubble-babies, que não aumentam normalmente de peso e têm infecções graves e difíceis de tratar), e que carecem de uma reconstituição imunológica completa ou seja, um transplante de medula óssea. Quando não existe um dador considerado adequado, a terapia génica, ainda em fase de aperfeiçoamento, é já uma opção nalguns países. O mais frequente, contudo, é o defeito residir apenas na produção de anticorpos, no seu número ou função. Nestes casos o tratamento consiste na substituição dos anticorpos através da administração periódica de imunoglobulina, o que pode ser feito de 4 ou 4 semanas por via endovenosa, ou semanalmente por via subcutânea, o que tem a enorme vantagem de poder ser administrada em casa e conferir autonomia ao doente (e família).
É importante ter a noção de que estamos a tratar doenças que se conseguem manter sob controlo a maior parte das vezes, habitualmente com o auxílio de outros meios (antibióticos, antifúngicos, vacinas, cinesioterapia respiratória, imunomoduladores, etc); pretende-se que para a criança e sua família, à semelhança de outra doença crónica, a vida continue da forma mais natural possível e sem grandes restrições.
As crianças afectadas devem ser, contudo, alvo de uma atenção especial quando adoecem: observação no início da doença (habitualmente através do contacto directo para o telemóvel do médico ou enfermeira) e baixo limiar para iniciar antibioterapia, eventualmente endovenosa. O pulmão é o órgão alvo por excelência de muitas imunodeficiências primárias, pretende-se evitar lesões irreversíveis (designadas de “bronquiectasias”), consequência de infecções repetidas, ou então evitar o agravamento, ou mesmo melhorar, as alterações já existentes. Neste sentido, o tratamento com imunoglobulina veio revolucionar a qualidade de vida e prognóstico destes doentes.
Por isso é tão importante um diagnóstico precoce, diga-se em abono da verdade, também extremamente gratificante para o médico. Paradoxalmente neste campo as doenças mais severas curam-se, mediante um procedimento com riscos, o transplante de medula óssea, ou são invariavelmente fatais, e as doenças “menos graves” serão crónicas, controláveis, mas sem cura vislumbrável num futuro imediato. Existem ainda algumas recomendações especiais para grupos especiais, mas são a excepção e não a regra. Cada IDP tem as suas particularidades, impossível de cobrir num texto desta natureza.
Gostava de reforçar a ideia da importância do diagnóstico precoce, comum a qualquer IDP, pelas suas implicações prognósticas. A Medicina nesta área avança a um ritmo vertiginoso, os meios de tratamento actuais permitem a cura ou o controlo da maior parte das IDP, no futuro certamente novas e melhores opções terapêuticas vão aparecer, mas qualquer das opções terá melhores hipóteses de sucesso se o doente se encontrar na “melhor forma” possível.
*António Figueiredo, pediatra.
Nem de propósito! Este artigo/post é de extrema utilidade para mim, mãe de um bébé de 5 meses e meio, que há um mês atrás fez uma pneumonia de focos múltiplos com causa não identificada, uma vez que os testes a vírus, bactérias e fungos vieram negativos (talvez pela antibioterapia endovenosa ter destrúido a causa antes de identificada). Amanhã temos nova consulta para concluir (já com novos resultados nas mãos) se o nosso pequenino viu as defesas muito reduzidas pela doença ou se pelo contrário possui alguma deficiência genética... e este é o nosso maior receio!
ResponderEliminarEste blog é excelente no que diz respeito a informar e de certa forma tranquilizar os pais, principalmente os de primeira viagem como nós.
Muitos Parabéns pela seriedade com que tratam cada assunto e obrigado
Um tema dificil de abordar e desconhecido para a maioria. É bom informar e alertar com serenidade.
ResponderEliminarO meu filho hoje com 14 anos, sofre de Imonodeficiencia Primária (defice de IGA), e o seu ponto fraco são as amigdalas. Desde sempre fez amigdalites de repetição com febres muito altas, tendo melhorado bastante com um tratamento homeopático que faz desde os 4 anos de idade, chegando a passar mais de um ano sem nenhuma infecção. Porém desde Janeiro deste ano já vai na terceira amigdalite, e o pior de tudo, é que ele é alergico à amoxicilina, pelo que está muitíssimo limitado no que respeita a um tratamento mais adquado. Não é fácil lidar com esta situação. Muito obrigada por este artigo, que ajuda muitos pais que vivem este problema e que para muitos desconhecido.
ResponderEliminarAldina Guimarães