segunda-feira, 7 de junho de 2010

Segredos

Por João Paulo Batalha*


O meu pai conta-me, eu não me lembro, da primeira vez que eu e os meus irmãos fomos a pé sozinhos para a escola. Não era fácil. Vivíamos junto à estrada marginal, em S. João do Estoril. Era à época uma das mais movimentadas do país, com todo o trânsito pendular da Linha, muitos anos antes das auto-estradas. O primeiro obstáculo, logo à nossa porta, era atravessar a estrada em segurança. Mais à frente era a linha do comboio. Coisas de responsabilidade para três miúdos da escola primária.


A minha mãe, sendo mãe, levava-nos e ia buscar-nos todos os dias, a pé mas com acompanhamento parental. E não concebia que isso mudasse. Um dia pediu ao meu pai que assegurasse o serviço. Conta-nos ele, com o justificado orgulho de quem viu confirmados os seus bons instintos, que logo à saída de casa nos perguntou se sabíamos o caminho. Dissemos que sim, claro, como crianças desejosas de conquistar o seu espaço no mundo. Lá nos largou, embora – ressalva dele – com o cuidado de nos seguir discretamente à distância, a garantir que não fazíamos asneiras. Não fizemos.


Esta precoce carta de alforria foi outorgada com uma condição: Não digam nada à mãe. Está claro que, mal voltámos da escola, a minha mãe foi cercada por três pintos orgulhosos a anunciar que tinham ido para a escola sozinhos. Houve discussão, mas a verdade é que desde essa altura (desde que me lembro, praticamente), passámos a ir sempre sozinhos para todo o lado.


Os miúdos têm uma incapacidade irremediável de guardar segredos. Não conseguem, pura e simplesmente. É uma incapacidade só comparável à sua disponibilidade para fazer promessas. Incluindo prometer guardar segredo. É sem dúvida das melhores coisas de se ser miúdo. Quero dizer-te uma coisa, prometes que guardas segredo? Juro! Logo a seguir, segredo? Nem vê-lo!

Isto não é desonesto. Pelo contrário, é a coisa mais honesta que existe. Uma criança promete o que lhe pedirmos. Não porque seja dúplice (isso vem depois, como vem para toda a gente), mas porque lhe pedimos – e porque lhe parece perfeitamente possível cumprir tudo o que promete, e por isso promete tudo o que lhe proponham. É aliás uma óptima maneira de se saber o que é ou não realizável neste mundo: basta pedi-lo a uma criança. Se ela não conseguir fazê-lo, é porque não pode ser feito.


Quando uma criança promete uma coisa e não a cumpre, a culpa é um pouco nossa. Claro que lhe ensinamos que não pode fazer promessas e não as cumprir. É a nossa obrigação. Com isso, inevitavelmente, ensinamos-lhe a ponderar, a hesitar (e até no limite, a mentir). Mas é mesmo assim que tem de ser, a transparência absoluta com que uma criança vive e pensa não é pura e simplesmente viável. A vida é feita de compromissos, constrói-se tanto de palavras como de silêncios, o que é muito pouco romântico, eu sei, mas é assim.

Dizem que se as crianças mandassem não havia guerras. Havia havia, acreditem. Os miúdos sabem ser cruéis. O que não havia era tretas. O que se calhar também não era mau.

*Formado em História, João Paulo Batalha é jornalista e fundador da Storymakers, uma empresa dedicada à produção de exposições, eventos e produtos culturais para crianças

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