quarta-feira, 6 de outubro de 2010

A Pediatria


Por Luís Januário, presidente da Sociedade Portuguesa de Pediatria*

Vivemos os tempos conturbados de uma crise mundial que alguns querem reduzir aos aspectos quase caricaturais da política nacional mas que é uma crise civilizacional, cujas causas, dimensão, profundidade escapam ao indivíduo comum mas que é seguramente demorada, com reflexos na comunidade que somos e sem saídas visíveis.

O Estado emergente da segunda guerra mundial e do triunfo das democracias esboroa-se, sem que se vislumbrem propostas que assegurem que as suas funções mínimas - nomeadamente na saúde, educação, justiça - serão substituídas por modelos capazes de assegurar o bem estar geral, o respeito pelas minorias, a igualdade de oportunidades.

O ser humano, asseguram os neurobiólogos, é incapaz da visão de médio e longo prazo.

A civilização da ilha da Páscoa derrubou até à última árvore para levantar as estátuas das divindades, os maias desmataram as florestas, os habitantes do Chaco Canyon não resistiram à alteração ambiental que ajudaram a produzir.

Por outro lado o nosso cérebro produz permanentemente imagens, uma construção autobiográfica, uma falsa causalidade entre eventos díspares, dominado por uma compulsão para dar explicações, encontrar uma razão profunda na vida - mesmo quando nenhuma razão, nenhuma coerência, são prováveis.

Nenhum privilegiado renunciará ao que considera o direito adquirido, mesmo que este o tenha sido pelo roubo, o engano dos crédulos.

Destruiremos as florestas como os habitantes da ilha da Páscoa, e nenhuma memória do passado nos salvará enquanto alguns beneficiarem alguma coisa e a turba não sentir a fome, a miséria e a doença (que é um pouco diferente de “o povo sentir as dores do governo”).

É neste cenário de fim de festa que crescem a crianças da Europa, de maneira desigual consoante a cena decorra na Calheta ou em Cascais mas todas unidas na contracção demográfica, na superioridade relativamente aos mais fracos, no desconhecimento e no medo do Outro (seja ele o cigano, o árabe ou o subsahariano).

No caso português é importante juntar a estes factos outro, mais antigo e mais importante: muitas das nossas crianças são pobres. Somos o país europeu com mais pobreza infantil e onde os factores de stress económico são mais importantes tais como os de privação material (condições materiais de vida, habitação, posse de bens duráveis, capacidade de obter as necessidades básicas).

Só conseguiremos responder às questões das crianças e das famílias se juntarmos à nossa visão especializada uma outra, de carácter global, sobre a infância.

Nos dias de hoje essa visão não pode ignorar as alterações sociais que criaram uma sociedade de filhos únicos, na cidade de betão sem passeios nem quintais, com creches e ATL,s impondo ritmos que, como veremos neste congresso, são muitas vezes mais exigentes do que os impostos aos adultos empregados.

Dez por cento das crianças entre os 9 e os 17 anos têm problemas de comportamento. Os problemas de comportamento atravessam todas as idades e são o motivo explícito ou o não-dito de muitas consultas.

Os avanços tecnológicos informatizaram os serviços muitas vezes na perspectiva da facturação.

A facilidade de contacto com colegas de outros centros e de outros países e o acesso on line à informação tem uma contrapartida: muitos pais também procuram informação na rede, tornando a questão da administração da informação e da comunicação uma exigência.

A profissão de pediatra é hoje exercida no feminino.E as mulheres trazem ao exercício profissional um repto: como conciliar a família com a carreira?

O Serviço de Saúde modificou-se. Na crise económica um sector que parece rentável é o da saúde. Os capitais privados investem na saúde criando uma competição que seria saudável se não enfraquecesse o SNS, capturasse mão de obra especializada após mais de 20 anos de elevado investimento e num ambiente em que as regras de respeito pela carreira médica- e a própria noção de carreira médica- foram congeladas.

O que procurámos fazer foi assegurar a centralidade destas questões, promover a investigação e a formação, a ligação à investigação antropológica, linguística, biológica, sociológica, filosófica.

Crentes de que, se houver resposta, ela terá de ser encontrada nas nossas baixas origens, como dizia Darwin, na nossa animalidade, que está paradoxalmente próxima da natureza e da divindade.

Acabo como comecei: quando deixo o meu cérebro à solta ele dá-me, apesar dos tempos cinzentos, uma mensagem de optimismo. Não interessa que este optimismo seja, ele também, sem ligação com a realidade, apenas uma manifestação mais da pressão selectiva da evolução. Os meus antepassados optimistas foram bafejados na lotaria genética da procriação e é a eles que agora agradeço esta característica, que sei partilhar com muitos de vós e em última análise nos reúne aqui hoje.

* discurso de abertura do 11º Congresso Nacional de Pediatria que decorre até 8 de Outubro no Funchal e reúne mais de 700 pediatras.

3 comentários:

  1. Excelente colocação e contextualização dos problemas com que a nossa sociedade (global e nacional) e por consequência as nossas crianças se confrontam, dos desafios (insuperáveis?) que enfrentamos todos como sociedade, como pediatras, como pais (será que os políticos sequer os querem ver?). Não sei se partilho do optimismo, partilho mais do realismo, mas sei que mesmo não estando optimistas não temos o direito de desistir. Parabéns pelo discurso. Marta Conde

    ResponderEliminar
  2. Um bonito discurso, mas que me fez perder algum do optimismo...
    No dia-a-dia vou-me apercebendo de muita coisa, até porque não deixo as células cinzentas muito tempo na monotonia da rotina, mas este discurso fez-me perceber a enormidade do buraco para onde saltámos avidamente, sem pensar se será possível alguma vez de lá sair...
    Gosto de pensar no milagre da união, mas temo que acabemos precisamente como os Maias: longe de tudo o que conseguimos, sem memória de tudo o que atingimos, apenas tentando sobreviver e sem sequer poder ensinar outros a não cometer o mesmo erro...
    Einstein disse que viajamos numa espiral de tempo-espaço, mas acredito que somos tacanhos de mais para ver além das duas dimensões e, como tal, caminhamos em círculos e é por isso que a história teima em repetir-se...

    Haja esperança, para bem dos nossos filhos e dos que mais se seguirão.

    ResponderEliminar
  3. Marta e S da Veiga, obrigado pelos comentários.

    ResponderEliminar