quarta-feira, 14 de julho de 2010

Só de fraldinha para ficarem mais fresquinhos

Quando tu nasceste, choraste e o mundo alegrou-se.
Vive a tua vida de forma a que, quando morreres, o mundo chore e tu te alegres.
(ditado nativo-americano)

Na semana passada comemorou-se o aniversário de dois dos meus avós. Da minha avó materna, que já morreu há muitos anos e de quem me lembro todos os dias como se a tivesse visto ontem, e do meu avô paterno, que está de excelente saúde e nos convidou para irmos lá a casa ver o futebol e jantar todos juntos.



Eu não tenho grande queda para o que normalmente se chama “os velhinhos”. Confesso que nunca senti muita apetência (nem paciência) para ouvir a mesma história vinte vezes, contada com voz trémula, e pontuada mil vezes com a expressão “no meu tempo” ou “isto agora”…


Na minha família nunca tive muito contacto com esta realidade. Os meus avós são, ou foram, pessoas activas, lúcidas, actualizadas e em contacto com a realidade do mundo. Os avós dos meus filhos trabalham tanto ou mais do que eu, ou, no caso dos meus sogros que já estão reformados, alinham em correrias no parque infantil e sabem de cor o último modelo do carro da Barbie ou a consola mais tecnológica lançada no mercado.


Mas recentemente, suponho que não alheio ao facto de ter passado a barreira dos 30, dou por mim a pensar na vida. Na velhice. Na passagem dos anos. Pela primeira vez, surpreendo-me a constatar que gostava de chegar aos 100 anos. Rodeada de netos e bisnetos. Do meu marido também, já agora. Gostava de ter alguém a quem contar o que aprendi na vida, como uma velha anciã, de roda de quem os jovens se juntam para ouvir frases cheias de sabedoria e conselhos avisados.

Descubro que talvez valha mesmo a pena fazer um pé de meia, começar já, e cuidar da minha saúde para um dia chegar aos 80 e ouvir coisas como “Ai, eu não lhe dava mais de 70!”.



Isto é o que eu gostava. Depois há a realidade. Há anúncios como o que eu vi há uns dias: “Vá de férias descansado e deixe o seu idoso connosco!”. Sim, é real, e a publicidade a um ATL para idosos.

E há a história que me contaram de uma reunião num serviço de saúde, em que se discutia a onda de calor e de como os idosos internados estavam a sofrer com ela, e onde alguém dá a genuinamente bem-intencionada sugestão: “Deixem-nos andar só de fraldinha para ficarem mais fresquinhos”.

E há as residências VIP para a terceira idade, na Marginal de Cascais, com uma vista espectacular para o mar e onde eu nunca vi ninguém na varanda. Ninguém. Não é tão triste?


(imagino-me a viver ali e digo sempre que por lá passamos, “quando a mãe e o pai forem velhinhos tu pões-nos aqui a viver e depois vens-nos visitar ao fim de semana, está bem?”. Ela abana a cabeça e tenta sempre fazer-me prometer-lhe que nunca vamos ficar velhinhos).


Oiço histórias como a da “fraldinha” ou o ATL para idosos e o meu primeiro instinto é rir. De tamanho disparate. Mas depois fica este nó na garganta.

Saberemos nós alguma vez arranjar forma de conviver com a velhice de uma maneira normal?

Penso nisto e lembro-me do que temos falado neste blog a propósito das crianças. De ter paciência, respeitar os ritmos, ouvir, aprender. De como o ritmo desenfreado nos impede de gozar as coisas simples, com eles.


Da importância de todas as idades da vida.

A imagem que ilustra o início deste texto é de Gustav Klimt e chama-se “As três idades da Mulher”. É muito conhecida. No entanto, talvez sejam mais os que conhecem o pormenor da obra em que a mãe, jovem, abraça o seu bebé. Mãe e filha. Belas. Perfeitas. A imagem da mulher idosa, à esquerda, raramente é utilizada para posters ou cartões de felicitações. E, no entanto, está lá.

Ela está lá, essa é a verdade. E está lá porque é real. A imagem que nos habituámos a ver não é a mãe e o seu bebé. É a mesma mulher. Só ocultámos a sua imagem já velha.

Estaremos a ensinar as crianças para conviver com a velhice? Com a nossa velhice? Com a sua própria velhice? Saberão elas que não há fases da vida mais ou menos importantes? Saberemos nós?

Como é que se faz isto...? Esta aproximação... sem ser levar as criancinhas a lares de idosos onde se batem palminhas e se dança descoordenado ao som de músicas ridículas?

Esta sociedade que sabe tudo comete os mesmos erros com as crianças e com os idosos. Cria ATLs para os entreter e libertar os adultos activos da sua guarda. Entretém-nos com digitintas e DVDs.

Qual é a maneira certa de recuperar o respeito pelo ancião?

Dúvidas, dúvidas… tantas dúvidas.

E só uma certeza. Eu não quero ser um fardo para os meus filhos quando for velha. Mas agradecia que houvesse alternativas a ficar, só de fraldinha, num hospital.
Horrorizada por ser eu, igualinha talvez ao que sou hoje, presa num corpo para o qual ninguém consegue olhar.

10 comentários:

  1. Belo texto. Tive que me esforçar para que não caísse uma lágrima.

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  2. Como sempre excelente amiga... e é verdade, também eu, desde que passei a barreira dos 30 penso muito mais nisto. Rais parta a vida adulta pá!!

    E claro, também não quero ser um fardo para ninguém mas espero sinceramente que na 'nossa altura' já haja muito mais respeito, qualidade de vida and so on... pelos avós e bizas!

    Bjs

    Rita Branco

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  3. Como voluntária num hospital público, esta é uma realidade que não me passa ao lado e, confesso, que me perturba...
    Podia deixar-vos um (triste)testemunho de uma situação que vivi logo no 1º dia em que estive no hospital mas a história é longa e difícil de traduzir para um mero comentário a esta maravilhosa (como sempre!)reflexão...
    Enfim, também digo sempre que não quero ser um fardo para as minhas filhas, mesmo porque sou muito independente... Mas o que é certo é que não posso ter a presunção de que nunca vou precisar de depender de ninguém porque não sei o que a vida (e a saúde)me reserva...
    Só sei que me assusta terrivelmente a ideia, não da velhice, mas da solidão na velhice...

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  4. Um texto lindo!!!!
    A verdade é que ninguém se lembra dessa fase da vida, ou então tentamos esquecer que todos vamos passar por ela!
    Exactamente por ser difícil aceitarmos que já não podemos fazer certas coisas que estávamos habituados, por ser a fase final e não deve ser fácil lidar com esse facto, devia ser a fase mais respeitada, mas não é!

    Pode mudar na geração dos nossos filhos... dependendo da educação que lhes vamos dar :)

    um beijinho enorme Conca,

    Filipa SC

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  5. Muito bom e muito a propósito. Quando se pouparia num orçamento geral de Estado que em vez de canalizar verbas 'a fundo perdido' para depósitos de crianças e idosos soubesse investir na criação das condições necessárias para que as gerações se apoiassem mutuamente no seu percurso natural.

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  6. Eu acho que a melhor forma de viver a nossa velhice passa desde logo por nós. Verdade de La Palisse, está visto, mas certa. O meu sogro, de sessenta e tal anos, perante um diagnóstico mal feito por um médico incompetence, redigiu a própria sentença de senilidade e, não fosse ter havido pressão para uma consulta com especialista, em que o diagnóstico foi o inverso, tenho para mim que o homem tinha passado de são a senil em poucos meses. Porque se reformou, se sente inútil e aquele diagnóstico naquele momento foi a bomba. Eu não quero chegar a isso. Quero ser uma velha gaiteira e quero fugiu da senilidade a sete pés e acho que isso só se faz se nos sentirmos úteis. Obviamente que se a saúde nos tolher os membros e a mobilidade, é uma porra e dá-nos cabo das melhores das intenções. Mas, ainda assim, acho que nos compete, acima de tudo, escolher a nós o nosso destino quando formos velhos.

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  7. A minha mãe visitava regularmente um lar de idosos, daqueles "chiques", que custam um dinheirão, mas onde o respeito (ou a falta dele) pelos idosos residentes era igual aos dos lares pobres e sem condições, como aqueles que vemos por vezes serem encerrados pelas autoridades. Contava-me a minha mãe que lhe custava lá ir, ao ver a desconsideração pelos internados, mas sabia que as suas visitas eram a única alegria na vida de alguns deles, e por eles valia a pena continuar. Um dia contou-me uma história de terror: um dos senhores mais idosos, que tinha especial dificuldade em lidar com as humilhações a que era sujeito, resolveu terminar com a situação. Com muita dificuldade amarrou o cinto do robe à cabeceira da cama, colocou a outra extremidade à volta do pescoço, e deixou-se cair. Calculou mal a altura da cama, e ali ficou deitado no chão, ainda vivo e mais humilhado que nunca.
    Esse senhor já morreu, a minha mãe também. Penso muitas vezes em como será o fim da minha vida, e espero que os meus filhos não me deixem ser tão humilhada assim, mas espero também que não me humilhem eles, não me reconhecendo o direito a fazer as minhas escolhas e decidindo por mim o que pensam ser melhor. Também acredito, como a Tânia, que é a nós que compete escolher o nosso destino

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  8. Maravilhoso texto!! Identifico-me completamente com todas as ideias! Obrigada por mais uma reflexão fantástica.

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  9. É impossível parar o tempo. Estamos todos a envelhecer (óbvio)mas enquanto desfiamos os dias da nossa vida nem nos damos conta disso.Não conseguir atender o telefone porque se perdeu progressivamente a audição, sentir a dor inesperada nos dedos das mãos ao lavar a loiça com água fria, vestir a saia preta quando a intenção era vestir a azul porque a visão já não é a mesma,demorar a perceber o sentido da carta que se recebe do Banco; tropeçar no passeio, esquecer-se de uma série de coisas,... tudo isto pode acontecer-me e faz-me ficar inquieta. E no entanto, ver os meus (possíveis) netos acabarem o curso, sentir as festinhas na cabeça como se fosse uma menina pequenina, saber que depois de me deitar o meu filho me virá compor o cobertor que eu não terei tido força para puxar, receber na boca a colher de carne passada com puré de batata, ouvir "hoje está muito bonita" mesmo quando a cara estiver enrugada...tudo isto pode acontecer-me e faz-me ficar com mais esperança. Gracie

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  10. Um excelente texto pelo conteúdo e forma.
    Este mal da sociedade, o desrespeito pela idade de Jubilo (os espanhois p.e. chamam jubilado e não reformado o que enobrece) é fruto da nossa cultura ocidental onde se cultiva o eternamente jovem.

    Neste aspecto os povos orientais estão tal como em outros, mais maduros. Há respeito e reverência por aqueles que viveram mais do que nós e que sabem mais do que nós da vida ainda que às vezes queiramos à força impor a nossa sapiência aos outros.

    As pessoas entediam-se quando alguém mais velho fala e conta um relato de vida quando deviamos ouvir e aprender. Sabem o que acho engraçado? É que essas pessoas guardam memórias profundas, descritivas e fantásticas e nós no inicio dos nossos 30s muitas vezes não conseguimos descrever algo que se passou há 2/3 anos devido ao nosso consciente e inconsciente estar ocupado com constantes estimulos.

    Saber respeitar e tratar quem nos tratou, é um sinal de uma civilização avançada e da mais elementar humanidade no seu melhor.
    Filho és pai serás, assim como o fizeres assim o receberás.

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