terça-feira, 13 de julho de 2010

Reflexões de um Pediatra de urgência, num hospital distrital

Por Inês Torrado*


Vinha da sala de partos, onde acabava de nascer mais um menino vigoroso… chinês. Este ano vamos com menos duas dezenas de partos em relação ao ano passado. Ainda vão ajudando nos números os emigrantes de leste, os brasileiros, alguns chineses…

No elevador cruzei-me com um menino de 6 anos, muito obeso, que comia um pacote de açúcar, mastigando já uma pastilha elástica. Ao sair, ainda ouvi a mãe a ralhar: “Olha que vou dizer à tua médica que não fazes nada do que ela mandou!”.

No corredor do serviço, fui interceptada por um delegado de informação médica, que apresentava dois novos medicamentos. O primeiro, era um suplemento alimentar para crianças distraídas, sem critérios formais de criança hiperactiva com baixa de atenção, isto é sem doença. As cápsulas parecem umas gomas, que dão vontade de comer de uma só vez, apanhando os pais desatentos.

O outro medicamento destina-se a manter a flora intestinal, estando indicado segundo o delegado: “para diminuir a diarreia, porque as crianças têm cólicas, porque choram.. Olhe, mesmo quando não se queixam, só faz bem e desde o primeiro mês…"

A pensar nas recomendações da SPP sobre vacinas para 2010, que estava a ler antes de ser chamada ao bloco de partos, tinha contado 10 vacinas recomendadas para 15 doenças. Em conjunto com a melhoria da qualidade de vida, da higiene e da educação, que drástica mudança em meio século no panorama das doenças pediátricas!

As crianças sobrevivem cada vez mais e melhor em Portugal.

Um contraste com os colegas de medicina interna, a braços com serviços e urgências entupidos de doentes. Uns com várias doenças num só corpo, outros só com uma, mas no corpo todo, e tantos que já nem sabem bem qual o mal…

Se as crianças são cada vez mais saudáveis, porque morrem tão mal uns anos depois?

Hoje, até sabemos que muitas doenças do adulto “nascem” na infância e mesmo antes.

Tantos hábitos bons se instalam na infância e perduram pela vida toda. O que mudou?
Em pediatria, já não são as doenças que preocupam, mas sim a saúde. Nós, médicos, fomos mais preparados para tratar doenças, do que para promover saúde…

Vivemos num mundo que nos consome. Perdemos a dimensão humana. Morremos à fome no Sul e comemos demais no Norte. Dá mais lucro engordar as populações e de seguida emagrecê-las, do que resolver a saúde das populações.

A crise chegou. Medos e insatisfações paralisam o bom senso.

No fim do banco, transferi um lactente de 2 meses por, discutível, administração profiláctica de paracetamol pós vacina… mas numa dose tóxica, por erro de interpretação.

Talvez, pudéssemos evitar dar medicamentos na ausência de doença, e defender melhor a saúde dos que ainda não se podem proteger. Mas isso implica sairmos dos hospitais e aproximarmo-nos mais das crianças e da comunidade.

*Inês Torrado, pediatra.

6 comentários:

  1. Daí a importância da articulação com os médicos de família, pela posição privilegiada na comunidade :)

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  2. A minha filha está num infantário desde os 6 meses e assustaram-me na altura. "Os miúdos, no início, apanham todo o tipo de doenças mas ao menos ficam logo protegidos!". Quase 7 meses depois ainda só apanhou uma constipação quando ainda estava em casa! Tem sido super saudável e todos os dias estou grata por isso. Não sei a razão mas aquela miúda é rija, lá isso é, e ainda bem :)

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  3. PS: uma vez queria dizer que gosto muito deste espaço. Obrigada!!

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  4. Pois, se calhar os hábitos bons que se deveriam instalar na infância não estão lá... Na creche da minha piolha tem havido muitas festas de anos (de 2 anos!) e de todas as vezes eu recebo na creche um saquinho com gomas, chupa-chupas, rebuçados e afins. Serei só eu que acho que crianças desta idade são demasiado novas para tanto açúcar?

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  5. Ficou-me na cabeça uma frase que para mim tem bastante impacto...

    "Em pediatria, já não são as doenças que preocupam, mas sim a saúde. Nós, médicos, fomos mais preparados para tratar doenças, do que para promover saúde…"

    Será esta a resposta à pergunta "Porque é que existem tão poucos Pediatras a promover e a apoiar a amamentação?" ????

    Bjinhos
    BABS

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  6. Sair e aproximar-se do mundo real será sempre uma boa medida! Seja-se médico, professor, operário ou, simplesmente, humano!

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