que somados seriam nossos corpos
implantam-se no espaço novos corpos
ora mais ora menos que dois corpos
Que escorpião de súbito estes corpos
quando um espelho reflecte os nossos corpos
e num só corpo feitos os dois corpos
ao mesmo tempo somos quatro corpos
Não indagues agora se o meu corpo
se contenta só corpo no teu corpo
ou se busca atingir todos os corpos
que no fundo residem num só corpo
Mas indaga sem pausa além do corpo
o finito infinito destes corpos
David Mourão-Ferreira
Eram seis da tarde e eu tinha oito anos quando dei o meu primeiro beijo na boca. No campo de futebol da quarta classe, à porta das casas de banho, jogava-se ao bate-pé. Eu e uma amiguinha da mesma idade emparelhávamos com dois rapazes mais velhos (nós éramos da segunda, eles eram da quarta). Aquilo não estava fácil para o meu lado.
A minha amiga já tinha entrado na casa de banho duas ou três vezes, sem bater o pé aos números que correspondiam ao beijo na boca com e sem língua e a variações mais elaboradas que incluíam apalpões fortuitos e consentidos. Eu dizia que sim ao abraço, beijinho na cara e pouco mais. O resto, tudo o que passava do número 3, obtinha, lá está, um bate-pé determinado da minha parte.
Ora, diziam as regras que só se podia bater o pé três vezes até se ser expulso do jogo e a minha amiga começava a fulminar-me com os olhos. Afinal, ela queria continuar a jogar e eu não podia sair de jogo assim, já que o meu par era irmão dela e, haja limites, ela não ia jogar com o próprio irmão e o coleguinha. Não, eu tinha que continuar. Portanto, assim estávamos nós, às seis da tarde. Mais uma nega minha e o jogo estaria arruinado (bem como a minha vida social no recreio da primária, concluí eu, prudentemente). Foi assim que ao novo pedido de beijo na boca (sem língua, não te preocupes) enchi o peito de ar e entrei na casa de banho com o meu experiente companheiro. Fechei os olhos com força, cerrei os lábios e preparei-me. Pronto, foi rápido, está despachado. Dificilmente se poderá chamar beijo ao que se passou, mas por qualquer razão, o rapaz gostou e destemido volta a agarrar-me para pedir “mais um, só mais um”. Para mim foi o limite.
Um pontapé certeiro, a porta aberta em par e eu atravesso a correr o campo da quarta para entrar esbaforida na sala de estudo onde se faziam os trabalhos de casa e de onde eu me baldava diligentemente todos os finais de tarde.
No dia seguinte, e contrariamente ao que eu pensava, o grupinho do bate-pé não tinha desistido de mim. Não houve grandes jogos, mas por alguma razão, acharam que eu merecia o investimento e então dedicaram-se a explicar-me os factos da vida. Não fizeram um grande trabalho, diga-se de passagem. Mas eu estava abismada. Tanto que resolvi dizer à minha mãe que ela que não se preocupasse, pois eu já sabia o que era “f….”. E para confirmar: “Já sei que o homem e a mulher ficam todos nus à frente um do outro e depois a mulher engravida”. A minha mãe estava virada de costas a fazer o jantar. Lembro-me que ficou suspensa por um instante e se virou lentamente enquanto dizia: “Não se usa essa palavra porque é muito feia. E falta aí uma parte…”. Minutos depois, como qualquer criança de oito anos, eu estava completamente horrorizada e enojada.
(eu nunca, nunca, vou fazer isso, jurei a mim própria).
Avancemos vinte anos. Eu estou grávida. É domingo e estou na ronha no sofá com a minha filha de dois anos. Tenho uma barriga de cinco meses e contei-lhe há pouco tempo que vai ter um mano ou uma mana. Estamos a ver televisão e oportunamente vejo que vai dar o documentário da National Geographic, “A Vida no Ventre”. Parece-me uma boa ideia, vê-lo com ela, assim pode perceber melhor o que se passa dentro da barriga da mãe.
Começam as imagens e dou conta da esparrela onde caí - raio, mas como é que me fui esquecer da concepção?- o ecrã mostra a explosão de espermatozóides em correria desenfreada por ali acima e a menina delira: Que é aquilo, mãe? Que é aquilo?!Hesito. E decido despejar tudo de uma vez. “Olha que boa ideia, assim ficamos despachadas”, ela fica a saber como se fazem as coisas e se crescer a saber isto nem lhe vai fazer confusão nenhuma.
Comecei a explicar, mas ela bloqueou na palavra espermatozóide “Diz outra vez o nome daquelas minhocas, mãe!”, e ria, ria, ria…
Eu continuava estoicamente, tentando ser científica, mas pedagógica, num mix infrutífero. Tão infrutífero que se passaram dois anos deste episódio e ainda há poucos dias ela me pediu “Ó mãe, não fiques outra vez grávida sem falarmos com a senhora das sementes... É que eu desta vez quero mesmo uma mana”. Eu engoli em seco e balbuciei qualquer coisa como “não peças à senhora das sementes (?!), tens que pedir ao teu pai”. E fugi a sete pés.
Haverá uma razão para eu estar aqui a partilhar estes episódios bastante humilhantes. Na época da pedagogia e da ciência, fala-se da importância da informação para uma sexualidade consciente. Certo. Isto não é assim tão novo. Eu estudei 15 anos num colégio católico e em meados do 8ºano nós já sabíamos que havia sessão pedagógica sobre sexo. Meninas para um lado com a directora de turma “É normal que os rapazes tenham curiosidade sobre as vossas maminhas”, e nós aos risinhos (stôra, têm mais curiosidade pelas suas) e depois a garantia de que estávamos elucidadas para podermos sair mais cedo e ouvir à porta da sala onde estavam os rapazes com um padre velhote: “Agora que começais a sentir o sabor dos primeiros beijos na boca..”. E nós a correr pelo corredor fora, aos gritos e a rir.
Eram tentativas honestas dos adultos. Bem intencionadas. De cuja eficácia eu duvido, tal como duvido dos conteúdos assépticos e politicamente correctos, leccionados na sala de aula.
Dizemos que as crianças de hoje são mais avançadas, mais precoces. Não são. Elas têm é mais acesso a conteúdos que os adultos lhes fornecem.
Em muitos casos, o objectivo desses conteúdos é vender qualquer coisa. Noutros casos, mais raros, o objectivo é informar ou formar. Em ambos os casos, são coloridos, apetecíveis e têm uma boa dose de marketing. E usam orgulhosamente expressões como “sem papas na língua” ou “sem tabus” para justificarem o seu vanguardismo e ausência de preconceitos. Que interessa se os miúdos querem ou estão preparados para tanta informação. Se a sabem digerir. Como esta exposição que eu não vou comentar porque não vi. A Bárbara foi e diz que está bem feita. Eu confio. Mas comento esta reportagem, após a qual fiquei em choque.
Ele é bonecos com línguas articuladas, preservativos insufláveis, perguntas insistentes aos meninos que não sabem o que dizer. Que modernos e desempoeirados. (e desculpem-me, é de mim ou esta luta do sexo “sem preconceitos”, não é tão anos 90?). Horroriza-me o ar dos miúdos nesta reportagem. Tão incomodados, e a jornalista a perguntar “mas achas que dói?” e eles lívidos sem saber bem o que dizer. E mais de uma vez ouve-se “não sei nem me interessa”.
Parece-me uma súplica: mas porque me trouxeram aqui se eu só queria jogar à bola?
E fico a pensar. Nada contra explicarem às crianças de onde vêm os bebés. De forma informada e correcta. Está tudo muito bem. Mas arrepiam-me estes títulos “Sexo?.. e então?”.
Porque então… tudo.
Fica a faltar tudo.
Eu guardo para os meus filhos aquilo que acho que as crianças deviam saber. Quando perguntarem. Não antes disso. Que pressa temos nós de os encharcar em informação! Não sei se eles quererão ouvi-lo da minha boca, mas deixo na net. Pode ser que daqui a uns anos quando procurarem “sexo” no Google aqui venham dar e corem de vergonha com as palavras da mãe, mas qualquer coisa fique lá dentro.
É que eu não sei se confio nesta Educação Sexual politicamente correcta, com cheiro a desinfectante e látex.
E então falo para eles:
Eu tenho a certeza de que não é preciso veres exposições com bonecos articulados para saberes dar um bom beijo de língua. E não, não é nojento. Pode ser mesmo bom. Às vezes não é bom, mas isso é sinal que estás com a pessoa errada. Ou que és tu a pessoa errada para aquela pessoa. Às vezes só percebemos isso no dia seguinte. É confuso, mas assim são as coisas boas da vida… confusas, difusas. E sim, é bom teres toda a informação. Protege e respeita o teu corpo e o da outra pessoa. No momento decisivo o critério será o teu. Não te ponhas em situações de risco. Não vale mesmo a pena. E também não dói, necessariamente, lá está, se estiveres com a pessoa certa e estiveres preparada. Mas vai haver momentos em que não tens a certeza se é a pessoa certa. A verdade é que ninguém sabe bem, mas a maneira como o corpo se comporta é um bom indício. Vale a pena esperar porque há coisas que se calhar não vais compreender aos 14, mesmo que os Morangos com Açucar te pareçam tão adultos e conhecedores (são actores mais velhos a fingir ter a tua idade, sabias? e as palavras que dizem foram escritas por adultos).
Acima de tudo espero que descubras a poesia. Porque nas palavras inspiradas vemos como pode vir da carne o desejo, a paixão, o amor. É assim que deve ser. A vontade de agarrar e ser agarrado. Os dedos que queimam quando tocamos em quem amamos. As noites passadas acordado a pensar na outra pessoa, a música deprimente. O não querer adormecer só para ficar a olhá-lo mais um bocadinho. E um dia, anos depois da avalanche de hormonas, dás por ti a trocar fraldas, mas já não tens tempo de trocar poesia. És adulto, de repente. E fazes um ar entendido e falas sobre a importância da sexualidade consciente e alertas os adolescentes e as crianças de forma pedagógica. E crias exposições interactivas onde se leva os meninos ao fim de semana. E decides tu o timing em que se deve falar de sexo e como. E falas muito mas não fazes assim tanto. Porque em casa, já te esqueceste do fogo e agarras-te à ciência porque já não sabes dissertar sobre os mistérios do amor e da paixão. E usas a desculpa de que as emoções são subjectivas e é muito complicado e os meninos precisam de mensagens simples.
Mas isso é porque os adultos não sabem tudo. Porque se soubessem, arranjavam tempo e espaço. E se calhar descobriam que eles próprios também precisavam de alguma Educação Sexual ao longo da vida. Ou de ler um poema do David Mourão Ferreira de vez em quando, e de ter vontade de namorar mais.
Excelente texto!
ResponderEliminarLá anda o pêndulo a balançar: a geração que foi criada a fugir do sexo como um tabu vergonhoso vinga-se agora nos seus filhos, encarando o sexo "sem tabus" ou "livre de preconceitos" ou qualquer outro chavão em voga. Arma-se de cientifismo e toca de revelar tudo, como se a intimidade não passasse de mecânica (e como se a mecânica da intimidade não fosse o mais simples de aprender, ao fim e ao cabo).
Não querendo parecer moralista, deixemo-nos de tabus ou da falta deles. Que se tramem as modernices ou os conservadorismos. Ensine-se primeiro a responsabilidade, depois a poesia. O resto faz-se por si. É só estar atento às perguntas e deixar que as coisas corram ao seu ritmo.
"E se calhar descobriam que eles próprios também precisavam de alguma Educação Sexual ao longo da vida." :)
ResponderEliminarFabuloso!!!
ResponderEliminarVou imprimir e colar no caderno que escrevo aos meus filhotes para lerem um dia mais tarde, porque está fantástico!
Posso, não posso? :-)
pode, claro. que honra! um beijinho, constança
ResponderEliminarDepois de ler este post revejo-me na maioria das suas palavras. Não na experiência do primeiro beijo pois cada uma de nós tem a sua própria história, mas na forma como entende a educação sexual que tanto se apregoa agora como mais uma responsabilidade da escola. Concordo com as conversas em torno do tema sexo, sem tabu nas respostas às perguntas das crianças, mas sem as encher de informação sem sentido para elas naquele momento das suas vidas. As dúvidas vão chegando a seu tempo e podemos (e devemos) estar lá para as ajudar a resolver, mas sem impor a nossa forma (infalível) de ver o sexo. Mais importante que isso, seria ensiná-los a respeitarem-se a si mesmos e ao seu próprio corpo. E a respeitarem os outros. Nem a propósito vi hoje um episódio da Tyra Show que me chocou: raparigas de 12, 13, 14 anos a falarem da sua vida sexual.Uma menina - apesar do baton e do ar de mulher - falava de uma forma demasiado simples de uma "ménages a trois", outra dizia ter feito sexo com 2 parceiros na noite em que perdeu a virgindade, aos 12 anos... outra de ter feito sexo num túnel num jardim e de ter experimentado fumar erva e ecstasy... e as mães ali a ouvirem aquilo tudo. Umas choravam, outras tentavam responder de forma o mais elegante possível tendo em conta a situação.
ResponderEliminarFiquei a pensar em tudo aquilo. Tenho 27 anos, sou mãe e mesmo assim ainda tenho tabús em relação ao sexo. E não tenho vergonha disso.
Constança:
ResponderEliminarObrigada!
A honra é toda minha!
Adorei o texto! Belissima exposicao, palavras sabias!Devia ser lido por todos os pedagogos que preparam as aulas de educacao sexual. Ate porque os designados professores para esta disciplina (nome interessante para isto, discipline-se o sexo...) estao eles proprios muitas vezes perdidos no meio da informacao que "devem" leccionar.
ResponderEliminarObrigada!