quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

O Amor em tempos de crise

Por João Paulo Batalha*

foto: Edouard Boubat


Desta vez quero falar de economia. Eu sei que é um tema sumamente aborrecido, com pouco lugar num blogue sobre o que é sermos crianças e sermos pais e educadores. Mas quero falar disso porque já me aconteceu várias vezes ouvir os meus pais pedirem-me desculpa pelos falhanços, dizem eles, da sua geração.

Os meus pais eram pouco mais do que adolescentes quando eu e os meus irmãos nascemos. Pensando bem, eram pais ao mesmo tempo que estavam a aprender a ser adultos e, vendo as coisas assim, é um pequeno milagre que se tenham safado tão bem como safaram (e não estou a dizer com isto que criaram filhos espectaculares; estou só a admitir que as minhas falhas, que as tenho e várias, são culpa inteiramente minha; não tenho traumas nem álibis que comodamente desviem as culpas).

Tenho a agradecer-lhes isso. Mas os meus pais olham o estado geral das coisas e acham que devem um pedido de desculpas à minha geração. Eles, que tinham vinte ou vinte e poucos anos quando em Portugal se fez uma revolução que nos livrou de uma ditadura e de três guerras simultâneas, olham para o que fizeram e pedem desculpa.

Os meus pais distribuíam propaganda contra o regime no liceu, antes do 25 de Abril. Escreviam slogans contra a guerra nas paredes, pela calada da noite. Mas não foram eles que fizeram o 25 de Abril, dizem-me. E têm razão. Os chefes militares eram da geração anterior, como os chefes políticos. Os miúdos, como os meus pais, faziam barulho, protestavam (os que protestavam), foram participantes, não protagonistas.

Hoje olham, olhamos todos, para o estado do país e sentimos o desânimo. Habitamos a cidade da poeira cinzenta e fininha da resignação triste de que falava a Constança. Os pais pedem desculpa aos filhos porque temem estar a legar-lhes uma vida pior do que a que eles tiveram. Devia ser ao contrário, sentem os pais. Os filhos merecem melhor do que os pais, porque é isso que é justo. É assim que devia ser.

Eu não sei o que responda. Eu sinto-me mal representado na elite portuguesa, nos políticos, nos empresários, nos líderes em geral. Eu sei que a crise é séria, é grave e que nos vai fazer doer. Sei que vivemos durante anos numa tolice irresponsável em que nos ensinaram que tudo era fácil e imediato, e que a modernidade estava em exibir o grande carro, em vez de o grande carácter. E sim, este clima foi criado pela geração anterior à minha.

Devem-me um pedido de desculpas? E será que os jovens pais de hoje, que lutam para pagar infantários (ou apenas os livros escolares, ou apenas uma refeição quente por dia) devem um pedido de desculpas aos filhos? Nada nos resta então, senão a penitência e melancolia triste do fracasso?

Eu lembro-me de uma dedicatória num livro de poesia. A Sophia de Mello Breyner dedicava poemas ao marido, Francisco Sousa Tavares, “que me ensinou a alegria do combate desigual”. A poesia, tecnicamente, só começava na página seguinte, mas aqui já estava tudo. O combate desigual, naquele tempo, era contra a ditadura. A ditadura contra a qual os meus pais colavam cartazes – acção inconsequente, talvez, mas parte desse combate desigual, e da alegria desse combate desigual.

Hoje, sim, acabaram-se as certezas. O mundo é incerto e dá luta. Temos de inventar o nosso lugar dentro dele, já não há prateleiras onde nos podemos arrumar em bom e surdo sossego. O mundo é incerto e dá luta. Temos de desbravar o caminho nele; e temos de aprender o gozo disso, o prazer do inseguro, tentar, falhar e recomeçar. Reinventar tudo porque podemos. Construir-nos, descobrir-nos – e mudarmos de rumo porque sim, porque nos puxa a curiosidade de saber o que está para lá da outra colina.

Roubaram-nos as certezas? As seguranças? As deduções fiscais? Roubaram, sim senhor, ou deixaram-nas morrer de velhas e de podres. Mas se em troca nos ensinarem esta liberdade livre, esta liberdade clara e real e sem conforto, esta liberdade sem fundo e sem limites, então, digo eu, durmam descansados. Estamos quites.
  
*Formado em História, João Paulo Batalha é jornalista e fundador da Storymakers, uma empresa dedicada à produção de exposições, eventos e produtos culturais para crianças

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