Esta história não começa com “era uma vez”. E a razão porque esta história não começa assim é porque essa é a forma como se começa uma história que já aconteceu há muito tempo – há tanto tempo, que já nem nos lembramos de quando foi – e então dizemos “era uma vez”.
Não é esse o caso. Esta história aconteceu há pouco tempo, há bocadinho, ou está a acontecer agora, pode até estar ainda a começar ou não ter virado sequer a esquina. Mas nós já a sabemos. E então podemos contá-la.
Era então uma cidade igual a todas as outras. Como todas as cidades, tinha cores esta cidade. Era amarela e cor de rosa nas casas, vermelha nos telhados, tinha verdes inesperados, às vezes raros, e ruas escuras, que ficavam ainda mais escuras quando chovia. Mudavam as cores da cidade, consoante os dias, consoante o tempo. Mas ninguém se importava porque a seguir à chuva vinha o sol, depois da noite chegava o dia e as pessoas sabiam disso. Como sabiam disso, sabiam também que não havia nada de errado em rir e que também estava certo chorar. Porque as coisas só existem com os seus opostos e não há umas coisas mais certas que as outras.
E vivia assim esta cidade. Tinha dias bons e dias maus, pessoas boas e pessoas assim-assim, algumas pessoas más, outras simplesmente de mal com a vida. Mas vivia, a cidade, ia vivendo.
Nessa cidade, governada pelos adultos, havia também crianças.
Foram elas as primeiras a aperceber-se da mudança.
Ela veio devagarinho, talvez de noite, enquanto a cidade dormia. Chegou sem fazer barulho e começou a pintar as ruas, os prédios, os sorrisos, pintou tudo de cinzento. Era uma poeira fininha, quase imperceptível no início, mas que foi ganhando balanço, e assim, sem quase se aperceberem os habitantes da cidade, cobriu os dias, os gestos e as vozes.
Passou despercebida aos adultos, no início, mas não às crianças. Elas repararam logo no primeiro dia que as cores estavam mais baças e que os adultos tinham amanhecido com menos paciência, menos vontade de rir. Os gestos menos soltos, o coração menos livre.
Não tinham um nome para dar ao que se passava, as crianças. Mas os adultos, que precisam de nomes para todas as coisas, começaram a chamar-lhe muitas coisas. Crise, diziam alguns. Tempos difíceis, chamavam-lhe outros. Recessão, instabilidade, medo, insegurança. Havia sempre nomes para dar à onda de cinzento que atingiu a cidade. E quando os nomes não chegavam, arranjavam-se outros. Mais complicados, mas que diziam as mesmas coisas.
Só as crianças não entendiam porque se perdia tanto tempo a discutir a mesma coisa. Afinal, a vida tinha que seguir, bem ou mal. A roupa na corda tinha que ser apanhada senão vinha a chuva e havia outras coisas inadiáveis como o Natal ou os aniversários ou a vida.
E tentavam explicar isto, as crianças. Tentavam, mas às vezes saía-lhes mal. Saía em forma de birra. Ou então abriam a boca para pedir aos adultos que sorrissem mais, que tudo ia resolver-se e, enquanto resolve e não resolve, passam os dias e são dias perdidos, e era isto que queriam dizer as crianças, mas saíam-lhes trocadas as palavras.
Entre o que as crianças diziam e o que ouviam os adultos havia um desfasamento. Elas queriam dizer isto, falar da música e da alegria, pedir sorrisos e tempo. Eles ouviam pedidos de brinquedos caros e roupas de marca e DVDs e telemóveis. Não se entendiam, adultos e crianças.
E a culpa era daquela poeira cinzenta, com muitos nomes, todos feios.
Lembraram-se então as crianças de pedir ajuda aos pássaros. É uma coisa que se esquece quando se cresce, mas um talento que têm os meninos pequenos. Uma telepatia especial entre as crianças e os pássaros. Não comunicam por palavras, é tudo através do coração. Porque o coração dos meninos e dos pássaros é parecido: É pequenino, bate acelerado e sonha em voar.
Em segredo, as crianças pediram aos pássaros que furassem a poeira cinzenta e voltassem à cidade. Era Inverno e os pássaros não gostam de viajar com o frio. Mas não conseguiram ignorar o pedido das crianças. Chegaram já de noite e esperaram pela alvorada. E quando o sol raiou, cantaram. Cantaram à chuva, com as penas molhadas, enquanto a cidade acordava.
E os adultos apressados, como de costume, pararam e sorriram por uns instantes. Pelo inesperado dos pássaros pendurados nas árvores, a cantar fora de tempo, meses antes da Primavera. Sorriram um sorriso pequenino e surpreendido. Depois voltaram às preocupações habituais, porque às vezes é difícil deixar de vestir o casaco velho que pomos todas as manhãs e sair à rua com roupa nova. Mas sorriram.
Foram só uns instantes.
Mas o suficiente para as crianças ficarem mais descansadas por perceberem que os adultos não tinham esquecido como se fazia isso, de sorrir e ser feliz. Mesmo que só por um dia, ou até só por um instante.
Foram só uns instantes.
Mas o suficiente para as crianças ficarem mais descansadas por perceberem que os adultos não tinham esquecido como se fazia isso, de sorrir e ser feliz. Mesmo que só por um dia, ou até só por um instante.
"e não há umas coisas mais certas que as outras."
ResponderEliminare confundem a necessidade de um sorriso por comprar um DVD
Momentos de felicidade tb é isto Constança,ler como romper o manto cinzento da crise e não escurecer o "tempo" de ser criança.
lindo
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