*Por João Paulo Batalha
Faz parte de crescermos a constatação de que o Natal é quando o homem quiser, sim senhor, mas o homem acaba por só o querer uma vez por ano e por alguma razão será.
Na minha família alargada, entre irmãos e primos em vários graus, éramos uma ninhada numerosa. O Natal era uma ocasião (mais uma) em que se reunia a criançada toda, em que os embrulhos e os brinquedos se multiplicavam pela casa dos meus avós, em sacrifício do orçamento familiar e para júbilo sazonal da confederação do comércio.
Com a maioridade, pais e tios suspiram de alívio: passam a dar presentes mais comedidos – ou libertam-se com toda a justiça do encargo – e resignamos-nos todos à constatação de que o Natal com crianças é que vale a pena.
Pois vale. O Natal com crianças é a concretização do impossível. Num mundo em que nada é de graça (e num país ao qual “os mercados” ralham por gastar o que não tem), o Natal com crianças à volta é aquilo, exactamente, que lhes luz nos olhos frente a um embrulho invicto: é a magia de ter à frente algo estranho e desconhecido, ali posto para nosso usufruto sem custo nem esforço, pela única razão de que o mundo é um sítio bonito onde coisas mágicas geralmente acontecem. É um logro, sim, mas é como a paixão desenfreada ou o amor cego: um logro indispensável.
O meu primo mais velho percebeu que eu acreditava no Pai Natal numa idade em que, achava ele, já não devia acreditar. Matou-me o mito com uma troça impiedosa (expulsando aí, sabe-se lá, o amargo da sua própria descoberta). Eu, não querendo dar parte de fraco, fingi que era natural que afinal não houvesse um homenzinho modesto que passasse o ano todo no Pólo Norte a fabricar brinquedos para os distribuir numa única noite pelas chaminés do mundo inteiro. Fingi que era natural mas a lógica da coisa demorou a vencer-me.
Venceu-me. Chateia-me fazer compras de Natal. Embirro ver as lojas decoradas no início de Novembro. Preciso de ganhar balanço para a coisa – e ganhando, quando não vou demasiado em cima da hora, até acabo por gostar de escolher as coisas certas para as pessoas certas. É um carinho elementar que me agrada. E gosto de abrir as prendas lentamente, apreciar bem uma antes de abrir a outra. E dar, mais até do que receber.
Mas já não é a mesma coisa. Aliás, é exactamente o contrário do que fazia em miúdo, quando as prendas eram fáceis, grátis e corriqueiras, porque a própria magia era fácil, grátis e corriqueira. Aí rasgavam-se os embrulhos a correr e galopávamos de um para o outro. Três dias depois estava tudo destruído e tudo bem. Não custava a ganhar – que é uma expressão que a vida nos ensina a atirar aos outros com amargura e desprezo, depois de nos ter ensinado, às nossas custas, o que as coisas custam.
Afinal, raio de coisa, nada nos cai pela chaminé, temos de nos esforçar. E a magia não é automática e tudo exige trabalho e tudo se complica. A dificuldade dá outro sabor às coisas, claro. Um sabor maduro, que me faz abrir as prendas devagar e com cuidado, e estudá-las demoradamente, apreciar o carinho elementar de quem mas deu.
Mas custa-me concentrar-me, porque o meu sobrinho de três anos está a resgatar com alarido um carrinho de brincar do embrulho que o oprime. O Natal com crianças é que vale a pena.
*Formado em História, João Paulo Batalha é jornalista e fundador da Storymakers, uma empresa dedicada à produção de exposições, eventos e produtos culturais para crianças.
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