quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Aprender a criar (e a programar telemóveis)

Por João Paulo Batalha*



Às vezes sinto-me entalado pela História. Nascido em 1978, fui educado no séc. XX mas vou viver no séc. XXI. Quer dizer, a idade em que me diziam “tu não tens quereres” durou até mil nove e noventa e tal; as contas para pagar começaram a vir pela passagem do milénio. Bill Gates e Steve Jobs lançavam a revolução do computador pessoal mais ou menos pela altura em que eu entrava na escola. Tive de ir aprendendo a lidar com um mundo tecnológico ao mesmo tempo que ele ia sendo inventado. Nenhum primeiro-ministro me deu um magalhães para eu me entreter e, nos intervalos de me entreter, talvez aprender alguma coisa.

De modo que me sinto sempre ridículo a manusear um touch-screen. Hesito. No screen com que eu cresci, não era por pormos os dedos no ecrã que os actores da Globo iam para a direita em vez da esquerda. Só servia para a minha mãe se chatear porque tinha de limpar as dedadas. Acharei sempre natural que um touch-screen não funcione quando eu lhe toco (e não funciona mesmo; eles cheiram o medo) e que alguém que vá a passar perceba que eu sou apenas um idiota a tentar tocar um mundo que não é o meu.

Os miúdos de hoje não. Já nascem neste mundo tecnológico maduro. É por isso que quando um miúdo de dez anos me programa trinta tons de toque diferentes no telemóvel, consoante quem me ligue, o meu instinto é amuar. Raios, parece que já nascem ensinados! A questão é que não nascem. A tecnologia é-lhes intuitiva, sim, e isso abre-lhes imensas oportunidades, claro. Mas entre a oportunidade e a recompensa está a obra. O trabalhinho. E esse é mais importante hoje do que era no tempo dos meus pais, quando o emprego era mais certo e era para a vida.

Por isso não posso amuar. Tenho de me sentar ao lado do miúdo, eu que cresci com dois canais de televisão (mais o Tal Canal), e pedir-lhe que me ensine uma tecnologia que me irrita, que me faz sentir um homem lento num mundo rápido. Preciso das lições de um miúdo de dez anos para me manter um homem inovador (parece que isso hoje é a chave de todas as coisas), mas preciso sobretudo de lá estar para lhe pagar a lição.

Os gadgets têm vida curta e há sempre uma coisa nova para nos entretermos (juro que me parece que, literalmente de uma semana para a outra, toda a gente em Portugal arranjou um iPad). Entregarmos as crianças ao magalhães, à TV Cabo e à Internet e admirarmos a sua habilidade com as tecnologias não chega. No que toca a educação, sou um espartano: sou aquele tio que oferece prendas pedagógicas, mesmo que mais aborrecidas. Abre-se, não é tão divertido como a arma de brincar ou a consola de jogos, fica de lado. Tanto pior. Vai devagarinho. Insiste-se, puxa-se pela cabeça da criança – e na cabeça de uma criança livre cabe muito mais imaginação do que na de mil programadores de vídeojogos.

Porque o ponto é este: um jogo, um filme, um site – mesmo um brinquedo – são a imaginação de outra pessoa. São o ponto de vista de outro. Saber manuseá-los, consumi-los, é óptimo. É literacia tecnológica. Mas literacia não chega. Se formos pais conscientes, queremos que os nossos filhos aprendam a consumir, claro (melhor do que nós, de preferência, com mais inteligência e menos dívida acumulada). Mas, melhor do que consumir, queremos que os nossos filhos aprendam a criar.

É esse o negócio que tento fazer com um miúdo de dez anos que me programa os toques de telemóvel: maçá-lo com perguntas. Porquê assim? Porque não assado? Para que serve isto? E para que poderia servir? É este o negócio: ajuda-me a usar as ferramentas que alguém criou, e eu tento ajudar-te a criar as ferramentas que alguém há-de usar.

*Formado em História, João Paulo Batalha é jornalista e fundador da Storymakers, uma empresa dedicada à produção de exposições, eventos e produtos culturais para crianças

3 comentários:

  1. Já é o segundo texto seu aqui que gosto de ler. Não parece nada o homem lento de Coetze. Ir ao "site dos outros ler é literacia" mas não é "criar". Não precisa ser um tio/homem inovador basta que pense e crie como neste texto. Aposto que as crianças vão gostar.

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  2. obrigada. esta é uma boa perspectiva, em vez de os contrariarmos - porque eu também prefiro oferecer presentes que os obriguem a "remexer" - é caçar com esse gato.

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  3. obrigada por este texto! também eu nasci em mil nove e 78, e me revejo naquilo que descreve! também tento "puxar pela cabeça" do meu filho para o mundo não tecnológico, mais criativo! e a verdade é que não é fácil! mas grão a grão...
    Carla Martins

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