terça-feira, 14 de setembro de 2010

O Bairro do Amor


“Para criar uma criança é preciso uma aldeia inteira”

provérbio africano


Há coisas que só percebemos quando, de repente, sem estarmos à espera, olhamos em volta e tudo faz sentido. Eu não gosto de fazer planos, antes imaginar que ando ao sabor do vento e do destino. Esta filosofia, se assim se pode chamar, tem, obviamente, muitas falhas. Porque a verdade é que, mesmo inconscientemente, acabamos por procurar aquilo que queremos. Podemos é fazê-lo de forma tão despistada que nem damos por isso. E ser surpreendida com os resultados.

Foi o meu caso. Um dia, por uma sucessão de acontecimentos que simplesmente encaixaram uns nos outros, dei por mim a mudar de casa. Uma casa sobre a qual tínhamos feito uma reportagem uns anos antes e que não me saia da cabeça. Ao telefone eu comentava com uma amiga que um dia gostava de viver ali. Ela disse: “olha, ouvi dizer que está disponível”. Menos de um mês depois eu e o meu marido estávamos a mudar as tralhas.
Dois dias antes de começarmos a carregar caixotes, descobri que estava grávida. A minha barriga e o meu bebé já iam crescer ali.

É uma terra pequenina. Todos os dias quando saio de casa e cheira a mar, tenho a sensação que estou de férias, sem estar. Ao início estranhei a senhora da farmácia a perguntar se eu andava a tomar as vitaminas pré-natais ou os “bom dia” e “boa tarde” repetidos a cada 5 metros quando passeava na rua. Cresci e vivi no centro de Lisboa até me casar e o anonimato da cidade sempre foi das coisas de que mais gostava. Nunca me imaginei a viver de outra forma.

Até virem os bebés. Ela primeiro. E eu que não queria mandá-la para a escola antes dos três anos, constatei, ainda não tinha passado um ano, que não ia ter alternativa. Corri uma série de infantários. Uns tinham chão aquecido nas salas, outros, hortas biológicas ou piscinas de bolas. Todos cobravam mensalidades de (muito) mais de metade do meu ordenado. Em todos, durante os vinte minutos da visita, ouvi bebés a chorar, sempre os mesmos bebés, à espera de colo de alguma educadora ou auxiliar atarefada.
Mais uma sucessão de acontecimentos felizes e acabei por entregar a minha bebé ao único infantário onde não havia vagas, nem chão aquecido, nem luxos tecnológicos. Havia boa vontade, colos disponíveis e, mais importante, havia amor.
Tive muita sorte.

Como devia acontecer em todas as escolas, aqui as mensalidades são calculadas em função do rendimento dos pais. Como devia acontecer em todas as escolas, aqui todas as funcionárias desde a limpeza, às cozinheiras, passando pela directora, sabem o nome de todas as crianças. Como devia acontecer em todas as escolas, aqui há comida saudável e boa, feita, não por uma empresa, mas por cozinheiras a sério que mandam vir do talho carninha boa para os meninos e misturam maçã cozida na papa dos bebés. Como devia acontecer em todas as escolas, há regras e rotinas diárias, mas há também excepções, e meninos, que em vez de estarem na sala, andam a passear ao colo da directora pela escola fora, porque nesse dia estão mais tristes e há que lhes dar atenção especial.

E há música desde o berçário e, à medida que crescem, ginástica e ballet e natação. Tudo dentro do horário escolar, que a partir das cinco da tarde o trabalho das crianças é brincar. Não há muitos luxos, não é preciso. Há tudo o que as crianças realmente querem nestas idades: atenção, carinho, segurança. E há uma família na escola, de braços abertos para a família de casa.

Sei hoje que tive muita sorte. Ainda não tinha a ecografia do primeiro trimestre e o bebé número dois já estava matriculado. Lá anda ele, de colo em colo. A mais crescida chegou a chorar nas férias com saudades da escola. Até eu já tinha saudades do cheiro a sopa às 9 da manhã e o carrinho com maçãs cortadas para a merenda a passear pelas salas.

Levo os dois de manhã, um ao colo, a outra pela mão, o cão pela trela. É só subir a rua e estamos lá. À tarde, descemos a rua. Às vezes vamos até ao jardim, outras eles ficam a andar de triciclo e bicicleta na rua, com outras crianças do prédio e da escola. Ou apanham a senhora do quiosque que lhes dá beijinhos e bolos. No café ao fundo da rua, há outra senhora, com o mesmo nome da mãe, que põe a menina atrás da caixa registadora ou a leva para a cozinha para ajudar a fazer bolos.

Dizemos “bom dia” e “boa tarde” a cada cinco metros enquanto andamos na rua. E eu penso que, mesmo sem planear nada disto, não podia ter resultado de forma mais perfeita.
E tremo ao pensar que um dia eles vão sair e descobrir que o resto do mundo não é todo assim.

15 comentários:

  1. As terras pequenas têm esse encanto! Adoro! A escola dos meus, felizmente, também é assim, pequenina e familiar, com muitos colos para dar miminho, mas tem um defeito, é cara.
    Beijinhos grandes

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  2. Que lindo texto.
    Os meus filhos frequentaram e ainda frequentam um Jardim de Infância numa aldeia próxima de Cidade onde vivemos. É isto mesmo que acontece, as actividades dos meninos são testemunhadas pela comunidade, para a qual são mostradas e a quem se pede que colaborem, quer seja no cozimento de bolos e castanhas num forno da padaria, quer seja no conto de histórias da aldeia, suas vivências, etc.
    Infelizmente como diz, o Mundo "lá fora" é diferente! A M. já veio para a EB23 na Cidade, onde lá vamos conhecendo os pais de vista, onde os professores se esforçam (sim, com orgulho o digo) para levar a escola para fora e trazer a cidade à escola.
    Que bom que era, que estes Mundos pudessem conviver num ambiente fraterno e se interligassem.
    Mas infelizmente o despovoamento do interior, pareçe estar cada vez mais destinado, também com o abandono das escolas e das suas vivências ...

    Susana Ramalho

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  3. Adorei o texto! Também tenho a sorte de ter escolhido para viver uma cidade pequena, onde consigo conhecer os vizinhos. A escolinha que escolhemos e onde conseguimos vaga ainda com a piolha na barriga é um pouco cara, mas também tem a cozinheira que faz as compras no mercado, as educadoras que conhecem todos os meninos pelo nome, que dão colo sempre que é preciso, música e brincadeiras ao ar-livre. Todos os dias testemunho sorrisos, abraços e muitos risos entre educadoras e crianças, acho que isso diz tudo, certo?
    Quanto ao mundo lá fora, há tempo para o descobrir e sempre vão ter este mundo cá dentro como refúgio. :)

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  4. Não podia estar mais de acordo: pouco me interessam o chão aquecido, o material todo novo, gadgets topo de gama. O que eu quero são educadoras que a amparem nos dias menos bons e auxiliares que lhe dêem um beijinho quando ela cair no recreio.

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  5. Consta, adorei o teu texto e revi-me muito nele. Moro no campo, rodeada de gente boa, muitas árvores e ar puro. Prefiro mil vezes deixar o meu filho na nossa terra a trazê-lo todos os dias para Lisboa. Para mim seria mais prático, mas não sacrifico o bem-estar dele em prol do meu.
    Beijo grande.

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  6. Parabéns, Constança. Primeiro, pelo que escreves e pela forma tão sincera como consegues integrar objectividade e poesia. Em segundo lugar, por teres coragem para partilhar com o mundo a tua experiência e vocação de mãe. Sim, porque para se ser mãe nos tempos modernos, há que ter vocação. O instinto já não basta.
    Também abdiquei de muita coisa para voltar à província e proporcionar à minha Maria Júlia o melhor que se pode ter na infância: tranquilidade e muito, muito amor de muita gente cujos olhos brilham só de a ver crescer.
    Parabéns, amiga. És uma mãe como deve ser.

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  7. Ainda bem que se mudou, porque, assim, os seus filhos podem crescer num jardim lindo e, só mais tarde, descobrir que nem tudo são rosas, em vez de crescerem na selva à espera de encontrar uma flor e, quem sabe, nunca descartando a hipótese de ser miragem se o conseguissem...

    Tudo de bom para si e para os seus e obrigada pela partilha!

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  8. Que texto tão bonito. Até deixei cair uma lágrima! Parabéns pelos filhos, pela escola, pela sorte que tem e por partilhar.

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  9. :) Adoro Conca! É uma óptima harmonia, dias musicais! O outro mundo não tem pressa e quando aparecer vai-se tratando também com todas essas vivências que tornam personalidades seguras e preparadas. Beijinhos da Mafalda

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  10. Realmente não há equipamento ou tecnologia que substitua um colinho, um abraço, um sorriso, às vezes apenas um olhar.
    Belo texto, onde também, por motivo de memórias recentes onde ainda estou a passar as consequências por defesa de valores aqui muito bem descritos, saliento as seguintes passagens:
    "E há música desde o berçário e, à medida que crescem, ginástica e ballet e natação. Tudo dentro do horário escolar, que a partir das cinco da tarde o trabalho das crianças é brincar"
    "E há uma família na escola, de braços abertos para a família de casa."

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  11. Joao Manuel Santos Colaço17 de setembro de 2010 às 07:49

    João M.S.Colaço 63 anos de idade e aposentado
    Belo texto, que me fez acordar para um tempo em que meus pais andavam atarefados, mas deixavam aos filhos a missão de se cuidarem.
    Belos tempos em que o meu infantário era numa seira de palha ou cana, que era transportada na carroça da vaca e que depois era depositada na "cabeceira" da leira de terra onde os meus pais se envolviam na tarefa do amanho da terra que nos havia de recompensar com a produção agrícola que nos mitigava a fome.
    Se estava sol, por cima da cesta era colocado um enorme guarda chuva que me fazia sombra e quando começava a desaparecer a sombra, logo vinha uma mão amiga, rodar o mesmo.
    Se eu chorava, logo sabiam o que criança queria, e se tivesse a fralda molhada logo era substituida por outra e guardada a suja para meter em casa na barrela.
    Se a criança chorava mais forte, logo vinha a mãe que, pelo caminho apanhava uma folha de couve bem verdinha para lhe limpar o rabo...
    Os dias foram passando, esta criança foi crescendo neste belo infantário, até que começou a ter contacto com a terra onde começou a pousar os joelhos. Ela apanhava um punhado dessa terra, cheirava-a e levava-a à boca para a saborear e nesse momento logo vinha um dos pais aflitos limpar a boca ao menino.
    Foi, fazendo castelos com a areia da leira, areia essa que lhe daria o alimento que ela tanto viria a necessitar, e ouvindo a música celeste produzida pelas centenas de pássaros que com ele vinham brincar e tagarelar também. Se fosse Inverno, a casa de uma vizinha já idosa, era o local onde a criança ficava,onde sentada no borralho, ia aprendendo outros segredos da vida e ouvindo histórias fantásticas.
    Foi neste infantário fabuloso,onde havia animais de toda a espécie, com os quais o menino partilhava o espaço, que esse menino foi crescendo,até ir para a escola primária.
    Uma escola linda, onde ele teve medo de entrar no primeiro dia de aulas.
    A mãe e o pai foram com ele, para lhe ensinarem o caminho, mas no fim do dia de aulas, já o não foram procurar, pois ele já sabia o caminho para casa.
    Um dia e outro e, mais outro, e chegou o dia em que o menino teve que ir fazer exame da 4º classe à escola da vila.
    Parecia um príncipe, com camisa branca, um fato novo de casaco e calções,sandálias e meias compradas só para esse dia.O pai acompanhou-o, esperou pelas provas e aqui já era necessário ele começar a conhecer outros espaços, que seriam a sua segunda casa nos próximos anos, durante grande parte do dia.
    Ali ao lado da escola, havia o colégio, um monstro onde este menino deveria começar a esgrimir a sua pesada espada, para se fazer homem.
    Como as aulas começavam logo em tempo de chuva, lá ia ele com um saco de adubo vazio, dobrado ao meio e enfiado na cabeça, como uma capucha serrana, pois não havia dinheiro para lhe comprar uma gabardina, levando na mão uma pasta de cabedal onde carregava só os livros e cadernos para as disciplinas que teria em cada dia.
    Assim este menino foi crescendo, brincando sempre em contacto com a natureza e se foi fazendo homem até ao momento em que foi servir a nação como militar.
    Foi militar, andou na guerra do Ultramar, e fixou-se nessa cidade, onde todos são surdos e mudos e ninguém se conhece. Mas, apesar de tudo,ali constituíu família e ali procriou, sem ter tido a possibilidade de dar ao seu filho o prazer de andar pelas poças da água descalço e a chapinhar, de meter as mãos na terra e cheirá-la e saboreá-la, de viver na companhia da passarada, pois na cidade até estes fogem do ser humano. Ali fez a sua vida, ali criou seu filho e quando chegou a hora de ter que abandonar o seviço, pois já havia cumprido uma missão a que se entregou de alma e coração, regressou à sua terra natal, onde reiniciou muitos dos rituais por que havia passado enquanto criança.
    Como seria bom que aquele belo infantário ainda fosse hoje aproveitado e para os que já estão em provecta idade, este espaço se transformasse agora num centro de apoio à terceira idade.
    Depois da realidade, aquele menino continua agora a sonhar!

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  12. Oh João Manuel, que bonito texto!
    Assim se prova que mesmo caindo no mundo real, mesmo indo à guerra, o calorzinho dos primeiros anos continua a aquecer o coração!

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  13. mas esse mundo parece tão bonito para eles crescerem... é que para tomar conta deles é mesmo preciso uma aldeia inteira. dei-me conta disso quando nasceu o meu e eu, na grande cidade, não tinha nem os avós, nem os vizinhos, nem a senhora do café, do quiosque, da loja onde vamos sempre. eu cresci a ganhar afecto pelas senhoras do café, do quiosque, da frutaria, da padaria, das lojas onde íamos sempre e pensei que não ia ter saudades, mas tenho.

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  14. muito obrigada a todos pelos vossos comentários. faz-me verdadeiramente feliz esta troca de experiências e sentir que, atrás de um monitor de computador distante, nos encontramos aqui a tentar encontrar e contribuir para sitios melhores onde possamos viver a infancia como ela merece: com amor, natureza, calma e entre-ajuda. Muito, muito obrigada ainda ao João Manuel. É de testemunhos como o seu que nós, pais de hoje, precisamos. Faz-nos lembrar que nem tudo é plástico, descartável ou consumível. Um grande beijo a todos. Constança

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  15. Que bom ter lido isto! Sou psicóloga e trabalho com uma população média alta...eu que tenho formação e que sei o que na teoria é importante para a satisfação das necessidades das crianças, quase dou por mim a achar e a acreditar naquilo que os pais por vezes se querem convencer... Que os colégios privados são muito melhores e permitem mais oportunidades... se forem dentro da cidade melhor ainda e se andarem lá o menino x ou y, é o máximo! Como ainda não sou mãe, continuo a ouvir a célebre frase "quando fores mãe, vais ver, também vais meter o teu filho no privado". Não tenho nada contra umas escolas ou outras. Mas acredito que o mais importante no pré-escolar são as relações, as experiências positivas, o nos deixarem aprender a lidar com as emoções, com a frustração, brincar e ouvir não... sem receios, com segurança, sem medo que o primo ou o filho dos amigos já saiba mais uma cor, ou uma letra que o meu! Para isto, quase todos os lugares servem...na aldeia, no bairro, na associação, na cidade. Para isto, o que conta são as pessoas... Para isto contam também os pais, as suas ideias, crenças, o facto de se sentirem ou não felizes... não sei se são os míudos que dão a volta aos pais, ou se os adultos que andam com as prioridades trocadas!
    Ana

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