terça-feira, 7 de maio de 2013

O que vos fizeram hoje.


"I'm Sorry", ilustração original daqui.

Sete de Maio de dois mil e treze.
Escrevo por extenso, para assegurar a solenidade da data, neste espaço virtual onde talvez, daqui a muitos anos, alguém venha procurar artefactos da história dos nossos dias.

Se-te-de-Mai-o-de-dois-mil-e-tre-ze.

Este é o dia em que cerca de 107 mil crianças de 10 anos saem das suas casas para fazer o exame do quarto ano.

Vão pelo próprio pé umas, outras são levadas diligentemente pelos pais, ainda outras transportadas em autocarros, nos casos em que as sedes de agrupamento ficam a muitos quilómetros da escola de origem.

Do que está para trás destas crianças, ninguém sabe. Se gostam ou não de comer a sopa, se têm sopa sequer para comer, se lhes dói a barriga antes de entrar para a sala onde vão fazer o exame, se acabaram de se esquecer da matéria toda porque estão nervosos, ou se estão descontraídos e confiantes, se as professoras trabalharam com eles exercícios em que sentiam mais dificuldade ou se tiveram 4 professores diferentes num mesmo ano lectivo, se em casa têm pais pacientes que fazem revisões na mesa da cozinha ou se, pelo contrário, lá em casa há uma mãe que trabalha 18 horas diárias e um pai alcoólico e desempregado: isso não se sabe. Ninguém sabe.

(Elas sabem, as crianças. Mas mais ninguém quer saber.)

A próxima hora vai valer 25% dos últimos quatro anos.

Isto é como dizer que vale um ano inteiro.

Ainda faltam uns minutos e isso é bom.

Assim as crianças ainda têm tempo de falar com os repórteres das televisões que os aguardam no pátio.

Estás nervosa? Já estudaste tudo? E sabes que lá dentro estão professores diferentes? E gostas mais do português ou da matemática?

A pertinência informativa escapa-me, mas prefiro focar-me no ar doce com que os meninos respondem a estas questões absurdas, poucos minutos antes de entrarem na sala. Espanto-me em como se fala tanto de birras e de pequenos ditadores e, afinal, como são pacientes e doces estas crianças que vejo na televisão importunadas por adultos tontos.

Está na hora.

Carregando as suas canetas pretas, o lápis, a borracha e a sua história individual, as crianças entram na sala. À sua espera têm caras desconhecidas mas também um presente de boas-vindas, preparado com desvelo pelo Júri Nacional de Exames.  

Uma declaração, um compromisso de honra, em como não têm consigo telemóveis nem equipamentos não autorizados.

O Júri Nacional de Exames, essa entidade orwelliana, da qual se sabe pouco e que tanto pode ser constituída por pessoas de bem, competentes, incompetentes, génios da educação ou psicopatas furiosos - apenas para citar alguns exemplos - entendeu que esta declaração, este compromisso de honra era necessário.

 As crianças têm dez anos. A maioria não sabe sequer o que é cabular e o pouco que terão da noção de “honra” não deveria em nada estar relacionado com telemóveis.

“Honra”
e “telemóvel” são, aliás, palavras que não deviam aparecer juntas em nenhuma frase. Muito menos para ser lida e assinada aos dez anos de idade.

E no entanto, as 107 mil crianças assinam.  

Sete de Maio de dois mil e treze.

Este foi o dia em que o Governo português gastou cerca de 600 mil euros numa prova que envolveu deslocalização de professores e crianças e um dispositivo de forças de segurança capaz de intimidar o mais perigoso dos delinquentes.

Este foi o dia em que Portugal, o mesmo país que até há pouco tempo tinha no Governo um ministro com suspeita de forjar habilitações, obrigou crianças de 10 anos a assinar compromissos de honra,  antes de um exame que havia sido extinto há mais de 30 anos, quando se começou a trilhar o caminho, difícil e tortuoso, de uma escolaridade mais completa, mais inclusiva, mais justa e amiga das crianças. 

Sete de Maio de dois mil e treze.

Este foi o dia em que, em Portugal - o mesmo país onde há uns tempos se marchou nas ruas contra o novo sistema de avaliação dos professores - ninguém marchou pelas crianças.

Sete de Maio de dois mil e treze.

Este foi também o dia em que muitos recuperaram argumentários individuais de que as crianças se querem rijas, de que também fizeram o mesmo exame e que estão vivos, de que estas não são mais do que preocupações de pais dramáticos e hiperprotectores que fazem tudo pelos filhos.

Este seria o dia em que esses argumentos não teriam qualquer impacto em mim.

Que os colocaria no mesmo nível dos que defendem a “palmada educativa”, o viajar em carros sem cadeiras de segurança, as reguadas, as orelhas de burro contra a parede, as sopas de cavalo cansado ao pequeno almoço ou o “tempo do Salazar é que era”.

Mas não foi.

Porque hoje os argumentos individuais, aos quais reconheço direito e legitimidade na sua liberdade de expressão, se tornaram aterradores para mim, por terem eco precisamente nas instituições que deviam estar acima deles. Que deviam ter o melhor conhecimento, a maior evidência disponível, o maior cuidado e pedagogia ao serviço das crianças. Não tiveram.  
Porquê? Não sei.
(Mas desconfio.)

Sete de Maio de dois mil e treze.

Este foi o dia em que tive desde manhã a respiração acelerada e a garganta a sufocar por lágrimas quentes e incrédulas.

Se alguma destas 107 mil crianças aqui vier dar num dia futuro, fique a saber:

Eu, Constança Ferreira, no dia sete de Maio de dois mil e treze, estou contra.

Desoladamente contra aquilo que vos fizeram hoje.


11 comentários:

  1. acho uma violência submeter crianças de 10 anos a exame. O meu pai conta-me que fugiu no dia do exame da 4ª classe porque sabia que depois disso teria que ir trabalhar... Estaremos nós a caminhar para trás?

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  2. Excelente!
    Assino por baixo de cada palavra!...

    ass: mãe de uma criança de 9 anos, uma das 107 mil alvo desta anedota...

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  3. Não percebo o ponto principal deste artigo. Qual a razão contra este exame, além dos erros de procedimentos e da declaração de honra que tb me parece disparatada.
    Mas contra o essencial do exame porquê?

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  4. Não é uma violência submeter crianças de 10 anos a um exame. Não é essa lupa dramática. Discordo dos erros dos procedimentos destes testes. Concordo com o exame. Vivem-se tempos de "coitadinhismo" para com as crianças. Depois são indefesas e "traumatizadas"

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  5. Não tenho a certeza se entendo a sua questão.
    No entanto, tentarei responder ao que julgo que está a perguntar. O ponto principal deste artigo é esse mesmo: a forma, os procedimentos, a declaração de honra e o peso para a "nota final" que inclusive pode ser motivo para a criança não transitar de ano lectivo. Todos estes pontos descritos no texto. Quanto aos motivos, o que refere como o essencial do exame, a necessidade de avaliação das crianças no final do ensino básico não os abordei propositadamente. São outras questões, mais latas.
    Não tenho uma opinião completamente formada e teria que ler, ouvir especialistas e reflectir sobre o que diz a evidência disponível sobre as vantagens/desvantagens de uma avaliação sumativa de quatro anos, antes de consolidar a minha opinião.
    Não o farei neste momento, contudo.
    Para mim a forma foi tão grave que já nem se justifica sequer discutir o conteúdo, quando partimos destes moldes. Se quiser uma analogia, seria o mesmo que discutir a importância da alimentação saudável numa criança que não come há três dias. Neste contexto, qualquer participação que eventualmente me ocorresse ter nesse âmbito seria imediatamente afastada, pois considero as premissas mal intencionadas e descabidas. Considero que se houvesse uma intenção pedagógica e bem intencionada de avaliar e preparar as crianças para o futuro, os procedimentos não teriam sido, com toda a certeza, estes.
    Repito: para mim a forma, com todos os seus pormenores que considero escabrosos e inaceitáveis, é o motivo deste texto que, naturalmente, é pessoal. Não consigo fazer concessões que me levem a equacionar ou discutir coisas para além disto neste momento.
    Quanto ao último comentário, acrescento apenas que na minha óptica, muitas terão sido hoje as crianças a sentirem-se indefesas e traumatizadas. Mas não falei com todas elas e não vou generalizar, logicamente, aquilo que é uma suposição pessoal.
    Obrigada por todas as participações.
    Constança

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  6. Parece que quando se diz que um "exame não traumatiza ninguém" se pensa nas crianças que se conhece. E, por vezes, isso não inclui todas as crianças. O meu filho mais velho faz anos em Dezembro e, à conta disso, entrou na escola com 5 anos e só teve vaga numa escola da periferia da cidade média onde moramos, numa freguesia pobre, onde os pais não têm grandes estudos. Os meninos da sala do meu filho não tinham pais que soubessem corrigir os TPC ou pudessem pagar explicações, não tinham livros em casa, para além de, às vezes, terem muitos outros problemas (a título de exemplo, um dos amiguinhos do meu filho acabou por ser retirado à famíla no 5º ano porque os pais eram toxicodependentes). As notas destes miúdos estavam na corda bamba, apesar de terem algum apoio da escola... Uma má nota num exame é, para uma criança destas, uma reprovação. E uma reprovação é apenas uma forma de afastar ainda mais esta criança do sistema de ensino. Deve existir avaliação para fazer deteção precoce de problemas e intervir, não para contribuir para a desigualdade.

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  7. O país inteiro foge às suas responsabilidades, recusa exames, chuta para canto, não quer pagar dívidas e aposta num "coitadismo" de circunstância.
    A criança não sabe escrever ? pais e professores não ligam nenhuma ? Vai chegar ao 5ª ano sem saber escrever ? Não faz mal....e viva o Exame ! Temos que ser um bocadinho mais responsáveis, portugueses.

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    1. Que grande salganhada mental, Anónimo. Isto é uma questão moral e parecida com a dívida?! E que tem a escolha dum modelo pedagógico arcaico a ver com responsabilidade? A última vez que estes exames foram feitos dois terços do país eram analfabetos... Irresponsável é um ministro da educação que usa o sistema de ensino para o seu folclore ideológico-saudosista, e não para promover formas de ensinar o melhor possível, o mais tempo possível, o número maior possível de crianças.

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    2. Temos que ser um bocadinho mais responsáveis, sem dúvida. A nossa primeira responsabilidade por exemplo devia ser para com as nossas crianças que por acaso até são o futuro do país. Permitir que elas sejam expostas a experiências que no passado já provaram ter nenhum benefício era um bom exemplo de responsabilidade colectiva. Outro seria não permitir que essas mesmas crianças fossem confrontadas com a assinatura de declarações abjectas na sua forma. Ou não permitir ainda que as crianças fossem incomodadas por jornalistas, minutos antes de realizarem uma prova desta natureza. Esses seriam bons pontos de partida para a responsabilidade que apregoa.
      Mas dou-lhe outros exemplos que fariam de todos nós um Portugal responsável, e não só responsável, mais digno também: Não permitir que se gastem centenas de milhares de euros como o que rodeou o aparato deste exame quando há crianças que passam fome. Não permitir que adultos, que por acaso ( já pensou nisto? ) na sua maioria até ainda fizeram o exame da quarta classe antigo e que agora governam o nosso país, exibam diariamente a sua desonestidade, a sua desorientação e a proteção sistemática dos interesses económicos em desfavorecimento do real interesse social. Essa exigência que apregoa para as crianças, personificada em modelos rigidos de avaliação que já provaram ser inadequados, absurdos e obsoletos e que excluem rapidamente aqueles que têm menos suporte social é, isso sim, uma grande irresponsabilidade da sua parte. Ser um adulto que não só permite, mas defende que se volte ao antigamente é ser não só irresponsável, mas também ignorante.
      Fala de responsabilidade, fala de exigência, então procure aplicar esses mesmos valores a si mesmo e questione se a reflexão que fez sobre este assunto é porventura algo mais que enviesada e superficial. Ou como disseram na resposta anterior, nada mais que uma "salganhada mental" sem nenhum conteúdo.
      O pior coitadismo de circunstância é aquele que resulta da ausência da profundidade de pensamento e que gera uma carneirada social que engole tudo o que lhe dão a comer com argumentos populistas e fracos de que se está a fazer isto para gerar exigência ou um melhor ensino para as crianças.
      Pare para pensar. O Ministério da Educação está a fazer isto para poupar DINHEIRO. Muitas crianças não transitarão para o 5ºano onde o ensino é mais caro, no proximo ano muitos professores poderão assim ser dispensados. Muitas outras crianças acabarão por desistir da escola. Rapidamente se chegará onde estávamos há 40 anos onde a formalidade do exame da quarta classe não era mais que uma porta dourada que se fechava atrás de muitos, uma máscara para um país que não tencionava dar escolaridade à maioria.
      E quando chegarmos aí outra vez, de quem será a responsabilidade?
      Poupo-lhe a resposta: será não só dos que implementaram as medidas, mas também dos que o permitiram. Pior ainda: será dos que a defenderam. Será também sua. Pense nisto, anónimo. Sandra Alvez

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  8. O problema dos exames de 2º e 4º ano reside exclusivamente na pressão que os adultos estão a colocar na coisa: os pais e professores, porque se sentem implicitamente avaliados; os burocratas do Min. Educação (através do excesso de regras) por pura e simples estupidez, essa chaga da nossa função pública.
    De resto, é um excelente contributo para ajudar a desdramatizar a avaliação desde cedo.
    Se não fosse o histerismo dos adultos, o processo seria benéfico e pacífico. Assim, corremos o risco de traumatizar as crianças com o acessório.

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    1. Corremos é o risco de tratar as crianças como números, como um todo. E como a Constança escreveu - e muitíssimo bem - há inúmeras realidades em Portugal. Um exame a nível nacional é um perfeito disparate!
      E dizer a uma criança que vai fazer um exame que vale 25% do que fez durante 4 anos é no mínimo anti-pedagógico (para não dizer coisas mais feias!).

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