
“Para criar uma criança é preciso uma aldeia inteira”
provérbio africano
Há coisas que só percebemos quando, de repente, sem estarmos à espera, olhamos em volta e tudo faz sentido. Eu não gosto de fazer planos, antes imaginar que ando ao sabor do vento e do destino. Esta filosofia, se assim se pode chamar, tem, obviamente, muitas falhas. Porque a verdade é que, mesmo inconscientemente, acabamos por procurar aquilo que queremos. Podemos é fazê-lo de forma tão despistada que nem damos por isso. E ser surpreendida com os resultados.
Foi o meu caso. Um dia, por uma sucessão de acontecimentos que simplesmente encaixaram uns nos outros, dei por mim a mudar de casa. Uma casa sobre a qual tínhamos feito uma reportagem uns anos antes e que não me saia da cabeça. Ao telefone eu comentava com uma amiga que um dia gostava de viver ali. Ela disse: “olha, ouvi dizer que está disponível”. Menos de um mês depois eu e o meu marido estávamos a mudar as tralhas.
Dois dias antes de começarmos a carregar caixotes, descobri que estava grávida. A minha barriga e o meu bebé já iam crescer ali.
É uma terra pequenina. Todos os dias quando saio de casa e cheira a mar, tenho a sensação que estou de férias, sem estar. Ao início estranhei a senhora da farmácia a perguntar se eu andava a tomar as vitaminas pré-natais ou os “bom dia” e “boa tarde” repetidos a cada 5 metros quando passeava na rua. Cresci e vivi no centro de Lisboa até me casar e o anonimato da cidade sempre foi das coisas de que mais gostava. Nunca me imaginei a viver de outra forma.
Até virem os bebés. Ela primeiro. E eu que não queria mandá-la para a escola antes dos três anos, constatei, ainda não tinha passado um ano, que não ia ter alternativa. Corri uma série de infantários. Uns tinham chão aquecido nas salas, outros, hortas biológicas ou piscinas de bolas. Todos cobravam mensalidades de (muito) mais de metade do meu ordenado. Em todos, durante os vinte minutos da visita, ouvi bebés a chorar, sempre os mesmos bebés, à espera de colo de alguma educadora ou auxiliar atarefada.
Mais uma sucessão de acontecimentos felizes e acabei por entregar a minha bebé ao único infantário onde não havia vagas, nem chão aquecido, nem luxos tecnológicos. Havia boa vontade, colos disponíveis e, mais importante, havia amor.
Tive muita sorte.
Como devia acontecer em todas as escolas, aqui as mensalidades são calculadas em função do rendimento dos pais. Como devia acontecer em todas as escolas, aqui todas as funcionárias desde a limpeza, às cozinheiras, passando pela directora, sabem o nome de todas as crianças. Como devia acontecer em todas as escolas, aqui há comida saudável e boa, feita, não por uma empresa, mas por cozinheiras a sério que mandam vir do talho carninha boa para os meninos e misturam maçã cozida na papa dos bebés. Como devia acontecer em todas as escolas, há regras e rotinas diárias, mas há também excepções, e meninos, que em vez de estarem na sala, andam a passear ao colo da directora pela escola fora, porque nesse dia estão mais tristes e há que lhes dar atenção especial.
E há música desde o berçário e, à medida que crescem, ginástica e ballet e natação. Tudo dentro do horário escolar, que a partir das cinco da tarde o trabalho das crianças é brincar. Não há muitos luxos, não é preciso. Há tudo o que as crianças realmente querem nestas idades: atenção, carinho, segurança. E há uma família na escola, de braços abertos para a família de casa.
Sei hoje que tive muita sorte. Ainda não tinha a ecografia do primeiro trimestre e o bebé número dois já estava matriculado. Lá anda ele, de colo em colo. A mais crescida chegou a chorar nas férias com saudades da escola. Até eu já tinha saudades do cheiro a sopa às 9 da manhã e o carrinho com maçãs cortadas para a merenda a passear pelas salas.
Levo os dois de manhã, um ao colo, a outra pela mão, o cão pela trela. É só subir a rua e estamos lá. À tarde, descemos a rua. Às vezes vamos até ao jardim, outras eles ficam a andar de triciclo e bicicleta na rua, com outras crianças do prédio e da escola. Ou apanham a senhora do quiosque que lhes dá beijinhos e bolos. No café ao fundo da rua, há outra senhora, com o mesmo nome da mãe, que põe a menina atrás da caixa registadora ou a leva para a cozinha para ajudar a fazer bolos.
Dizemos “bom dia” e “boa tarde” a cada cinco metros enquanto andamos na rua. E eu penso que, mesmo sem planear nada disto, não podia ter resultado de forma mais perfeita.
E tremo ao pensar que um dia eles vão sair e descobrir que o resto do mundo não é todo assim.